Morrer é como nascer ao contrário

Meu pai está morrendo.

Não sabemos quando vai acontecer, mas morrer é o próximo grande evento.

O Alzheimer é uma doença muito nebulosa em tudo, não existem aquelas sentenças de seis meses pra viver como no câncer. Meu pai pode morrer amanhã, ou semana que vem, ou daqui a oito meses, ou no próximo ano.

E nossas vidas ficam quase suspensas enquanto isso.

Lá pelos anos 90 eu e todo mundo vimos o filme Gasparzinho:o fantasminha camarada, aquele com a Christina Ricci. Tem uma cena em que a personagem dela pergunta ao Gasparzinho como é morrer, e ele responde que é como nascer, só que ao contrário.

Meu eu criança achou um lixo de resposta, meu eu de hoje acha de uma profunda sabedoria.

As crianças começam a vida frágeis e sem conseguir sustentar o corpo, e aos poucos vão conseguindo sentar, engatinhar, dar dois passos e cair, até andarem propriamente.

Com o avanço da doença meu pai passou a andar mais devagar, depois só se alguém amparasse, e aí só na cadeira de rodas, até não conseguir nem sustentar o corpo sentado.

Hoje em dia ele já está totalmente acamado e precisa de auxílio pra tudo, inclusive pra ter o corpo virado de um lado pra outro pra evitar feridas nas costas, as famosas úlceras de pressão ou escaras de decúbito.

Ele também tem o vocabulário de uma criança que ainda aprende a falar. Só responde sim e não, às vezes um hein, e recentemente me deixou bem surpresa com um obrigado.

A parte que tem sido mais problemática é a da alimentação. O Alzheimer vai destruindo tudo, até o reflexo de engasgo que a gente normalmente tem. Com isso a pessoa engole comida ou saliva e tudo parece normal enquanto resíduos e bactérias vão direto pro pulmão.

Aí aparecem febre, prostração, falta de ar e outros sintomas. É a pneumonia de aspiração, que acaba sendo a causa de morte mais comum nesses casos.

Desde o ano passado meu pai já foi internado três vezes por pneumonia. Ele inclusive passou o último mês internado, a recuperação de agora tem sido bem mais tortuosa e sofrida.

O corpo ainda parece forte o suficiente pra suportar a infecção e responder aos antibióticos, mas a morte segue ganhando terreno.

Eu imagino meu pai e a morte jogando baralho, buraco ou canastrão, os jogos favoritos dele. A morte já venceu, mas meu pai segue enrolando, fazendo durar mais, se divertindo talvez como quando ele passava a madrugada jogando com os colegas no tempo de faculdade.

A morte é experiente, já jogou xadrez com o Max Von Sydow, Twister com Bill e Ted e damas com os Animaniacs. Ela é como aquele computador que passou os anos 90 apanhando no xadrez do Kasparov até finalmente vencer porque ela não cansa, tem uma memória quase infinita e pode desestruturar emocionalmente o jogador humano fazendo um movimento doidão por falha no sistema.

Parafraseando e invertendo o poeta galês Dylan Thomas talvez meu pai já esteja brigando demais com a boa noite. Eu me pego às vezes querendo que ele só vá gentilmente com ela.

Eu e a minha irmã pensamos muito em que tipo de consciência existe pra ele agora. Se seria tudo confuso como num sonho, ou se é a angústia de não conseguir falar o que se quer, ou mexer quando se quer.

Às vezes eu imagino que é como estar boiando sozinho numa caverna imensa e ouvir vozes vindo bem fracas do lado de fora.

Parece a especulação que a gente gosta de fazer em relação aos bebês também.

Meu pai ainda reage às músicas que ele gostava. Se a gente coloca pra tocar Caetano, Chico, Gil, Beatles ou Roberto Carlos o olhar dele muda totalmente, deixa de contemplar o nada pra parecer focado em alguma coisa. A memória musical é a parte mais persistente do nosso cérebro, nem as proteínas sinistras conseguem destruir.

Ele também adora comer, principalmente tudo que é doce. Tem sido uma luta sangrenta preservar esse que é um dos poucos prazeres que restaram, o poder biomédico intervencionista quer logo que ele use sonda no estômago. Não importa que as pesquisas nem recomendem no caso dele, e que seria só gerar desconforto pra um benefício inexistente.

Assim como nascer, morrer naturalmente ficou difícil também. Eu me vejo muito no lugar das mães que lutam por parto normal como regra, e não só “se der”, como um capricho, e também por alimentação natural, que tem bem mais benefícios do que a simples ingestão de calorias.

E nos dois extremos nós encontramos ela mesma, a Nestlé.

Já faz sete anos que estamos nessa saga inglória e em vários momentos parece que sempre foi assim, meu pai forte e saudável foi só um delírio que tivemos.

E às vezes eu me pego numa agonia toda renovada: por que justo com a gente depois de tudo que sofremos com a morte da minha mãe?

E a resposta implacável e verdadeira: e por que não?

Meu antídoto pro desespero do futuro vem do registro dos desesperos do passado. Em 2016 eu tinha medo de ser esquecida, mas em 2018 eu fui foi bem ok até.

Em 2017 eu tinha medo de ver as senhoras já acamadas em estado avançado de demência. Agora nós é que somos o fantasma do natal do futuro, mas não muito, porque na casa de repouso atual os acamados ficam separados dos outros.

Tem sido uma jornada confusa e tortuosa, mas cheia de momentos ternos também. Houve uma época em que meu pai foi mais feliz do que em qualquer outro período antes da doença.

Ele esqueceu que esquecia, parou de remoer o passado, não conseguia pensar no futuro, então vivia totalmente no presente. Tudo parecia bonito, cada iogurte era o mais delicioso do mundo, a minha semelhança com ele era como um detalhe impressionante que ele tinha acabado de descobrir.

Esse ano eu voltei a me sentir sozinha no sofrimento como eu me sentia na época do diagnóstico. Eu não escondo mais o que tem acontecido com meu pai, devo ter uns trocentos textos escritos a respeito, mas parece que eu e as outras pessoas voltamos a falar línguas diferentes, a ter um vidro de aquário separando o cotidiano delas da vivência anormal da minha família.

Eu, meu pai e minha irmã seguimos sendo punidos por sermos jovens demais pra tudo que temos passado.

Meu grande alento tem sido o fascínio de poder acompanhar o processo inteiro. Como a mente se reorganiza enquanto se autodestrói, como o corpo vai desligando parte por parte tentando ser gentil e quase pedindo desculpas pelo transtorno.

E eu deixo por fim um poema do americano e.e.cummings, que pode ser sobre amor, sobre vida, e sobre essa essência desconhecida que nos faz chegar aqui e também partir. A tradução é minha e o original é esse aqui.

esse é o segredo mais profundo que ninguém conhece

(essa é a raiz da raiz e o botão do botão e o céu do céu de uma árvore chamada vida; que cresce mais alto do que a alma pode esperar ou a mente pode esconder)

e esse é o encanto que mantém as estrelas separadas

eu carrego o seu coração (eu carrego junto ao meu)

(Quase nada além de) plantas

Semana passada eu estive em Vitória da Conquista na Bahia, saindo de BH pela primeira vez desde janeiro de 2020. O que conseguiu me arrancar daqui foi a vontade de ver duas amigas muito queridas, uma que vive em Portugal e estava visitando e outra que mora lá mesmo.

Era como se a casa tivesse um sistema imune feito de plantas que cresciam por todos os lados.

E vacinas, nada disso teria acontecido sem vacinas.

Conquista é a cidade do meu pai e fica no sudoeste do estado. Em tese é sertão, mas como fica em cima de um planalto costuma ser fria no inverno.

Por conta disso os moradores criaram esse apelido insuportável de “Suíça baiana”. Eu nasci e cresci em Itabuna e a gente que é da Região Cacaueira não tem a menor paciência.

Eu aproveitei a viagem pra ver a situação da casa em que a minha avó morava e que estava fechada fazia alguns anos. Minha avó morreu em 2008 e ninguém pisava lá desde 2018.

Meu pai comprou essa casa nos anos 70 pra que a minha avó tivesse um lugar próprio. Ela fica num conjunto habitacional que na época da construção era super distante do centro e mal tinha linhas de ônibus.

Mas a cidade acabou crescendo pra lá, incluindo o que hoje é o bairro mais badalado de Conquista. Daí que a casa da minha avó com a sua planta reduzida e ultrapassada não vale muito em si, mas o terreno grande e bem localizado é o que realmente importa.

Então fomos eu e as minhas duas amigas até a casa, chamando também um chaveiro pra trocar as fechaduras porque minha irmã tinha perdido as chaves.

Não foi fácil chegar, o bairro mudou muito, a cidade mudou muito, e é bem fácil se perder onde as ruas parecem todas iguais. Nem o Waze nem o Google Maps ajudaram já que eles registram o endereço como sendo o de outra casa.

Tivemos que recorrer ao método ultrapassado de baixar o vidro e pedir orientações na rua.

A partir da praça principal eu consegui me localizar e lembrei de todas as vezes que eu brinquei lá quando era criança. As ruas largas e tranquilas ainda são perfeitas pra andar de bicicleta.

Eu esperava encontrar a casa meio acabada, claro. Esperava que o mato estivesse alto, como até que estava no quintal.

Mas eu não contava que tudo estaria se retorcendo e crescendo na horizontal bloqueando todas as entradas como a cerca de espinhos em volta do castelo nas cenas finais de A Bela Adormecida.

Outras comparações também foram feitas com The Walking Dead e com O Jardim Secreto no começo do filme.

Minha avó cultivava bastante coisa naquela casa. Tinha pitanga, acerola, o café que ela mesma torrava e passava, sendo uma senhorinha mais artesanal que os artesanais.

E na parte da frente tinha erva de tudo e ainda as rosas.

Eu não consegui identificar direito o que tinha lá hoje em dia entre o semeado e o não semeado.

Aliás eu criei um certo trauma de gente que consegue.

Minha amiga bióloga também não soube, já que ela é ornitóloga, não botânica.

A única coisa que a gente sentia forte era o cheiro de erva cidreira.

Achamos primeiro que não ia dar pra passar do portão porque enfim, medo de todos os bichos que poderiam estar lá. Mas o chaveiro entrou e foi abrindo caminho, e aí deu alguma coragem.

Minha avó amava a gente, mas ela não era uma pessoa fácil. Ela era altiva, grossa com muita gente e um desafio à convivência.

Sendo assim fazia muito sentido que a casa dela com paredes comprometidas, sujeira e forro caindo estivesse guardada por uma muralha orgânica como se o menino do dedo verde tivesse passado ali.

No meio do abandono a casa conseguiu forjar a própria proteção, parecia tão viva quanto a Residência Hill da Shirley Jackson ou a Casa de Usher do Poe.

A mim como apreciadora do gênero gótico só restava temer e admirar.

Não sabemos qual vai ser o destino imediato da casa. Eu queria vender do jeito que tá e minha irmã quer ver se da própria construção algo se aproveita.

As coisas parecem um pouco mais urgentes agora já que meu pai tá entrando na fase final do Alzheimer. Ele até esteve internado há algumas semanas com pneumonia por aspiração de comida, muito comum no caso dele mas que em épocas de Covid causam um mini enfarto em todo mundo.

De qualquer forma a casa parece não ter pressa, ela aprendeu a se proteger. Por enquanto acho que só me cabe apreciar aquele momento de realismo fantástico no meio desse realismo distópico que têm sido as nossas vidas.

De quando eu e o jardim da minha avó éramos só bebês

Esse texto foi publicado originalmente na minha newsletter, que você pode assinar bem aqui e receber tudo no seu e-mail.

O título foi inspirado na música [Nothing but] Flowers do Talking Heads.

Lembrando as mortes coletivas

(…)

Porque tu estás morto para sempre

como todos os mortos pela Terra,

como todos os mortos que se olvidam

em um montão de cães que se apagaram.

Ninguém já te conhece. Não. Mas eu te canto

(…)


Garcia Lorca- Pranto por Ignacio Sánches Mejías (Trad. Jorge de Sena)


Em agosto de 1936 fascistas comandados por Francisco Franco executaram nos arredores de Granada alguns prisioneiros, entre eles o poeta e dramaturgo Federico García Lorca. A Guerra Civil Espanhola tinha começado um mês antes e ainda faria muitas vítimas.

Até hoje existem cem mil desaparecidos desses período, incluindo o próprio Lorca, e cerca de duas mil valas comuns onde eles poderiam estar.

Na escola a gente tem a impressão de que o fim da Segunda Guerra também acabou com todo o fascismo, pelo menos esse de primeira geração. Só que Franco governou até 1973, e mesmo depois da morte dele em 75 a lei de anistia impedia que as famílias buscassem respostas.

Eu sei, a gente já conhece essa história.

Depois de muitas batalhas judiciais foi possível começar a investigar algumas dessas valas comuns, isso já nos anos 2000. Os holofotes estavam em descobrir o paradeiro do corpo de Lorca, o que era compreensível, já que ele é o maior poeta espanhol do século XX.

Só que a família Lorca não estava muito feliz com isso não.

Em todos esses anos de impotência diante do governo os Lorca construíram sua própria forma de lidar com o legado de tanta destruição. Eles criaram fundações, um parque, e perto de onde ele foi assassinado está uma placa que diz “Lorca eran todos”.

Pra eles esses locais onde se encontram as ossadas já são cemitérios, e é justamente a presença do poeta em alguma dessas valas, qualquer uma, é o que permite que a memória de todos os desaparecidos continue viva.

Mesmo aqueles de quem nem se sabe os nomes, principalmente esses.

Pra mim foi estranho saber dessa recusa em encontrar um desaparecido e de dar a ele um enterro individual. A vida inteira eu conheci histórias contrárias, a luta de Antígona pra enterrar dignamente o irmão na peça de Sófocles, o horror dos cadáveres insepultos na Ilíada, as Mães da Praça de Maio na Argentina, Zuzu Angel aqui no Brasil, e tantos e mais tantos exemplos.

Lorca morreu com 38 anos e não teve filhos, seus familiares vivos hoje são sobrinhos-netos. Ele era gay, o que era mais ou menos conhecido de todos, tanto que foi um dos motivos da sua perseguição.

Ele também tinha ideais de esquerda, e se posicionou contra várias das injustiças do seu tempo, inclusive contra a nossa ditadura da época, que era a de Getúlio Vargas.

Eu não consigo imaginar um Lorca chateado de dividir a sepultura com o seu próprio povo, esse povo cuja diversidade ele retratou nos poemas e tentou alcançar em iniciativas de popularização do teatro.

Por outro lado eu também acho que ele apoiaria as famílias que tentam há tantos anos encontrar pais e avós.

Eu não tenho experiência em mortes tão coletivas, na minha família em geral se morre de doenças degenerativas, ou no máximo de alguma infecciosa que ninguém conseguiu prever.

São mais aleatórias mesmo, ao contrário dessas que acompanhamos todos os dias hoje e que invadem nossa vidas há mais de um ano. E que poderiam em grande parte ser evitadas com um governo menos assassino.

As mortes por Covid-19 no Brasil são tão políticas quanto as da Guerra Civil Espanhola. Eu não vejo grandes diferenças entre ordenar fuzilamentos e assegurar que um vírus mortal circule o máximo possível em um país.

Movimentos ultra-nacionalistas gostam muito de esquecimento. Se chegam ao poder eles ocultam dados, impedem censos, cortam verbas de pesquisa, censuram quem tenta fazer a verdade chegar aos outros. E claro, também prendem, torturam e matam sempre que o momento permite.

E aí no fim chega a anistia, que até significa esquecimento.

Que as famílias espanholas consigam encontrar seus antepassados e que isso traga conforto a uma dor tão antiga. Que as nossas famílias aqui consigam ter amparo pra essa dor tão recente, mas que também é o desdobramento de dores de outras épocas.

E que a gente sempre se lembre do que nos fizeram passar. Dos ritos funerários que foram negados, do luto distante, do desespero, dos crimes.

E invertendo as palavras de Lorca que possamos cantar os mortos que não podemos esquecer. E que as próximas gerações deles também possam se lembrar.


Esse texto foi publicado primeiro na minha newsletter, que você pode assinar bem aqui. Assim você recebe tudo de forma confortável lá no seu e-mail.

Meu pai em Meu Pai

Domingo passado eu resolvi que iria assistir a pelo menos um filme de Oscar e o escolhido foi Meu Pai (The Father, 2020) adaptação de uma peça francesa de 2014Era o filme que faria o Anthony Hopkins ganhar o prêmio de melhor ator, frustrando a expectativa de uma grande homenagem póstuma pra Chadwick Boseman.

Eu não vi o o filme do Boseman, mas eu imagino que ele estava muito bem. Nada contra o Pantera Negra. Mas eu sou filha de um pai com Alzheimer, e o Anthony Hopkins incorporou isso com perfeição. Ele até falava igual ao meu pai, e a cada vez que ele se perdia ou perguntava onde tava o relógio de pulso eu me lembrava do meu pai e sua eterna busca pela carteira e bolsa de trabalho.

Muitas idas à casa de repouso onde meu pai morava envolviam dizer que ele tava num hotel com tudo incluso, era só aproveitar e relaxar. Meu pai ficava muito tenso de comer e não saber como iria pagar já que não tinha dinheiro nem cartão.

E várias vezes eu só conseguia me despedir dele dizendo que ia viajar pra longe e não poderia perder o vôo. De qualquer forma quando eu aparecia ele sempre achava que eu tava voltando de viagem.

Mas isso tudo era bem antigamente, hoje eu poderia entrar e sair da atual casa de repouso sem problemas, já que meu pai não se lembra mais de mim. E de qualquer forma por causa da Covid eu não posso nem passar do portão.

Mês passado eu pude chegar perto do meu pai depois de mais de um ano, já que ele foi trocado de casa. Eu não podia abraçar, mas conversei um pouco, e pude pegar no cabelo dele.

Às vezes o que eu tenho mais saudade é de tocar naquele cabelo tão parecido com o meu, e tão preto ainda apesar de ele ter 68 anos.

Minha irmã assistiu Meu Pai depois da minha insistência mas pareceu não se empolgar tanto, na categoria Alzheimer ela ainda prefere Para sempre Alice (Still Alice, 2014). Esse foi um filme que saiu no Brasil mais ou menos na época em que tivemos que trazer meu pai aqui pra Belo Horizonte.

Pra mim ainda era tudo muito recente, aceitar a ideia do meu pai tão jovem e num asilo (ainda que caro), manejar as crises e peregrinar de médico em médico em busca de um diagnóstico que parecia insuportável até a gente perceber que poucas coisas são realmente insuportáveis na vida.

Acabamos nos acostumando com quase tudo mesmo.

No fim das contas eu vi o Para sempre Alice anos depois e achei bem tranquilo. Uma coisa que acontece comigo em filmes que claramente são sobre Alzheimer é que eles não me deixam tão impactada como naqueles em que um personagem parece ter Alzheimer e eu sou pega de surpresa.

Quando eu fazia letras isso acontecia o tempo todo. Não só o pessoal lá não acreditava nesse negócio de aviso de gatilho como também não tinha como avisar do gatilho de coisas que eles nem sabiam que eram sofridas pra mim.

E foi assim que eu tive crise de pânico tanto lendo a peça A morte do caixeiro viajante (Death of a Salesman, 1949) de Arthur Miller quanto vendo o filme de 1985, que pra piorar ainda era com o Dustin Hoffman, ator favorito do meu pai.

O meu professor de teatro americano passou o filme na sala e eu me programei pra chegar atrasada e perder uma cena que tinha me deixado péssima. Não adiantou nada, eu cheguei bem na hora dessa cena e tive que sair correndo da sala com falta de ar e taquicardia.

Mas filme e peça são maravilhosos, se você não tem problema com essas coisas eu recomendo demais.

E aí voltemos pro Anthony Hopkins. Não é a primeira vez que eu vejo o Hannibal Lecter no papel de pai doente sendo cuidado por uma filha. Ele estava no filme A Prova (Proof, 2005), baseado na peça de mesmo nome que foi vencedora de Pulizer e Tony em 2001.

A minha professora de literatura americana do século XX tocou na sala o audiolivro com a primeira cena e eu não consegui impedir as lágrimas de rolarem. Sorte que eu tava gripada no dia e pude justificar assim.

A peça é muito boa, mas o filme puxa pro lado do romance e eu acho que ficou aquém do que eu esperava.

Na história uma filha matemática genial tem que largar tudo pra cuidar do pai também matemático genial mas que tem a saúde muito debilitada por uma doença psiquiátrica não identificada. Tem uma outra irmã nesse meio, mas ela mora longe e só manda dinheiro.

O filme manteve a cena que pra mim foi a mais impactante, quando a filha principal encontra o pai sentado do lado de fora da casa no meio da neve e entende que ele não pode mais ficar sozinho.

Essa é a cena (sem legendas).

Sir Anthony e sua filha Gwyneth Paltrow

Aí vendo esses dois papeis semelhantes do Anthony Hopkins eu fique pensando: será que ele fez Rei Lear? Essa é uma das tragédias mais famosas de Shakespeare e talvez a primeira grande história de pai doente/louco e suas filhas.

O básico da peça já existia antes, mas foi Shakespeare que adicionou todos os elementos que fazem dela uma experiência bem dolorida.

A peça tem início quando o Rei Lear do título decide dividir seu reino entre suas três filhas porque já se considera velho demais.O critério que ele usa pra divisão é o de dar o melhor pedaço pra filha que fosse capaz da maior bajulação.

Daí que Goneril e Regan, as filhas mais velhas, acabam se saindo melhor. Goneril é maquiavélica, Regan é sociopata, e as duas juntas forçam aquela barra pra dizer tudo que o velho Lear quer ouvir.

Já Cordelia, a mais nova e até então favorita, se recusa a participar do circo. Ela diz que ama e respeita Lear como pai e rei que ele é, mas mais do que isso não.

Lear fica furioso e deserda Cordelia ali na frente de todo mundo. Ela acaba banida do reino, mas o rei da França que viu a treta toda fica com dó e casa com ela.

Essa cena tem uma estrutura de conto de fadas, e é mesmo quase idêntica à de Cap-o’ Rushes, uma história tradicional inglesa. Você também deve reconhecer esse esquema duas irmãs más e uma boa de histórias mais populares como Cinderela e A Bela e a Fera (a original).

De qualquer forma esse processo de sucessão estranho já sinalizava que Lear não andava muito bem, e até Goneril e Regan comentam entre elas que não esperavam o exílio de Cordelia.

Desse momento em diante as coisas vão só ladeira abaixo. Lear planeja se dividir entre os castelos das duas filhas mais velhas (junto com um exército enorme e desordeiro, aí por um lado eu não tiro a razão das irmãs do mal) mas depois de ser rejeitado por ambas e abandonado numa tempestade ele entra num processo de loucura que só se intensifica a cada cena.

Rei Lear tem tudo que o fã de Shakespeare gosta: assassinatos, traições, tortura, gente que finge ser o q não é, injustiças e quase todos os personagens mortos no final.

Na época em que eu estudei essa peça eu fiquei meio tocada, mas não alterada como com outras obras. Nessas histórias é importante eu me identificar com as filhas/os, e dessa vez não aconteceu, assim como também não rolou em Para sempre Alice.

Goneril e Regan são ruins demais, ainda que a gente concorde com algumas falas delas. Já Cordelia é muito boa, a personagem mais nobre da peça toda.

Eu me sinto bem no meio, como a Olivia Colman em Meu Pai, fazendo sacrifícios mas me imaginando longe desse sofrimento todo também.

Anthony Hopkins já tinha feito Rei Lear no teatro quando era mais novo, e eu acabei descobrindo que ele também fez um filme de 2018 que é ambientado na Inglaterra de um presente alternativo.

Apesar de ter o envolvimento da Amazon Prime o filme não tá disponível no Prime brasileiro, e eu acabei vendo no Youtube mesmo com legendas inúteis em árabe.

Aí eu entendi como esse ator conseguiu ser tão bom em Meu Pai, além do fato de ele ser um ator excelente. É basicamente uma variação do Rei Lear que ele faz há anos.

Esse filme me fez chorar tudo o que a peça não conseguiu, e de novo a Florence Pugh acabou me fazendo gostar de uma personagem que antes me dava antipatia. Primeiro Amy March em Adoráveis Mulheres, agora como Cordelia.

Lear e Cordelia passam boa parte da peça separados, e aí Hopkins e Pugh me fizeram desidratar no reencontro.

Pareceu o reencontro do meu pai com a minha irmã depois de ele ter sido traído e maltratado por gente da própria família. E depois que ela entendeu ele ter sido tão grosseiro e violento até então.

Sir Anthony e sua filha Florence Pugh

Pra uma família de plebeus a nossa bem que tem elementos demais das grandes tragédias.

E agora eu meio que entendo porque eu não conseguia me identificar com a Cordelia, ela representa mais a minha irmã do que eu.

Não que a minha irmã seja boazinha assim, longe, muito longe disso, mas foi ela que acabou acusada de coisas que não fez, ficou na linha de frente de várias injustiças e teve um arco de redenção junto com meu pai que não fez parte da minha trajetória.

Acho que a sina da Florence Pugh é representar a minha irmã. Eu e ela também tínhamos uma dinâmica de briga meio Jo e Amy March.

O Anthony Hopkins disse que quando um ator tem a idade pra fazer Rei Lear ele já tá velho demais pra fazer Rei Lear. Claramente não foi o caso dele, que teve a idade certa sempre. E pra sempre vai ter.

E agora a nossa família, eu, meu pai, Thaís e Bartozinho numa foto de 2018

O ano em que não teve Carnaval

Eu nasci numa segunda de Carnaval no ano de 1985, eu e o Axé Music somos basicamente gêmeos. O que quer dizer que o meu aniversário muitas vezes caiu no meio do feriadão e não teve festa, ou acabou só tendo depois.

Continuar lendo O ano em que não teve Carnaval

A outra mãe do meu pai

Chovia muito quando conheci Cotinha, a avó paterna de quem eu nunca tinha ouvido falar. Pra falar a verdade ela já me conhecia, já havia me visto bem pequena (menor que os seis anos que eu tinha nessa época) e até me apresentado à mãe dela, uma velhinha com olhos muito azuis e já inúteis.

Continuar lendo A outra mãe do meu pai

Um casamento em 10 anos de objetos

No fim do mês passado eu resolvi trocar o colchão que eu tinha há dez anos e isso acabou sendo uma ideia bem idiota. Era o colchão de quando eu me casei com o Lucas, o nosso primeiro móvel, aquele que foi entregue a tempo enquanto que todos os eletrodomésticos atrasaram.

Continuar lendo Um casamento em 10 anos de objetos

Você não me ensinou a esquecer

Graças ao meu pai eu cresci tendo uma boa memória, o que torna mais irônico ainda o Alzheimer que ele tem agora. Na minha família a gente guardava rancor como quem guarda documento por cinco anos. Exceto que a regra do rancor era guardar a vida inteira. Ninguém ganhava uma briga sem lembrar de várias coisas pra passar na cara, e era o tipo de situação em que não dava pra consultar anotações.

Continuar lendo Você não me ensinou a esquecer

A morte e a vida levam à Finlândia

Eu nem pensava em ir pra Finlândia antes de conhecer o Hugo, mas agora virou um desejo tão forte que eu até sonhei com isso. Hugo no caso é Hugo Simberg, pintor simbolista finlandês que viveu entre o fim do século XIX e início do XX e é considerado o grande artista do seu país, apesar de ser tão pouco conhecido nos outros.

Continuar lendo A morte e a vida levam à Finlândia

Porque a morte não parou pra mim

(…)

A lo sonoro llega la muerte

como un zapato sin pie, como un traje sin hombre,

llega a golpear con un anillo sin piedra y sin dedo,

llega a gritar sin boca, sin lengua, sin garganta.

Sin embargo sus pasos suenan

y su vestido suena, callado como un árbol.

Yo no sé, yo conozco poco, yo apenas veo,

pero creo que su canto tiene color de violetas húmedas,

de violetas acostumbradas a la tierra,

porque la cara de la muerte es verde,

y la mirada de la muerte es verde,

con la aguda humedad de una hoja de violeta

y su grave color de invierno exasperado

(…)

Pablo Neruda- Sólo la muerte

Continuar lendo Porque a morte não parou pra mim