Minha mãe morreu há exatos dez anos, num dia como esse, em que as pessoas estão ocupadas demais com as próprias esperanças e soltam fogos na TV. Você pode me dizer que o timing da publicação desse texto é péssimo, e é mesmo, mas eu quis reproduzir a sensação daquele 31 de dezembro de 2006. Mesmo que ninguém leia isso hoje.
Acho que eu já falei tanto de como é não ter mãe, do luto, e de como foi o processo da doença, que acabei deixando de falar de quem ela realmente foi. E a minha mãe foi uma pessoa incrível. Às vezes eu até penso que é opinião de filha, mas todo mundo que conviveu com ela acaba dizendo a mesma coisa. Poderíamos estar todos errados?
Eu sei que poderíamos, porque é natural enaltecer quem já morreu. Às vezes é difícil me lembrar de quem a minha mãe realmente era, a pessoa por trás da santa em nossas memórias. Mas eu vou tentar.
Minha mãe se chamava Lindalva, e nasceu no dia 21 de abril de 1956. Por culpa do meu avô, ela acabou sendo registrada com a data errada, 21 de agosto de 1955. E essa nem foi a única loucura dele, que também registrou todos os filhos com o nome da mãe errado. Grande sujeito, meu avô.
Minha mãe nunca achou muito legal ser um ano mais velha no papel. Por outro lado, a maracutaia involuntária serviu pra que ela e a sua irmã, nascida quase dois anos antes, entrassem juntas na escola.
Tia Lucineide era a expansiva, sociável e divertida, enquanto que a minha mãe era o bicho do mato que faltava em todos os primeiros dias de aula. Sobrava pra tia Lucineide a missão de contar que a galera da escola era de boas, e que dava pra ir sem medo nos outros dias.

Quando criança eu gostava de recitar a ordem de nascimento da minha mãe e de seus irmãos, mas agora eu não sei se ainda me lembro. Acho que era tia Lucineide (que morreu em 2004), minha mãe, tia Leda, tio Geo (que morreu em 2012), Eduardo (que morreu adolescente e eu não conheci), tio Tavinho, tia Norma e tio Lula.
Apesar de ser a segunda, minha mãe sempre agiu como chefe da turma, papel que tia Lucineide cedeu sem maiores problemas.
Boa parte dessa galera nasceu em Ibicaraí, uma cidade bem pequena no sul da Bahia, mas a família se mudou pra Itabuna (onde eu nasci) quando minha mãe ainda era criança. Meu avô tinha fazenda, caminhões e uma situação financeira que variava bastante.
Talvez pudesse ter sido mais estável se ele não gastasse tanto dinheiro na farra. Ou se ele não tivesse participado em trambiques diversos. Mas eu estou divagando aqui.
Minha mãe frequentava a Ação Fraternal de Itabuna, colégio católico e super tradicional. Nunca foi genial, nas palavras dela, mas compensava com esforço e método. Daí você imagina o choque que foi quando ela era adolescente e precisou ficar um ano na roça, sem estudar.
O exílio foi por conta de outra travessura do meu avô, que deixou a família inteira numa situação péssima.

Mas a minha mãe era de uma determinação furiosa. Não ia rolar grana pra um ensino médio tradicional? Beleza, ela terminou o técnico em secretariado. E ninguém ficaria entre ela e o ensino superior.
Ela insistiu em ir pra Salvador, onde fez cursinho e passou em nutrição na UFBA. Por muitos anos foi a única dos irmãos e irmãs a ter um curso universitário, até tia Leda se formar em serviço social recentemente.
E agora eu sou obrigada a dar o braço a torcer: meu avô sempre acreditou nela. Mesmo sendo ele mesmo um bruto machista, a caricatura do coronel que vemos nas novelas.
Minha mãe foi pra Salvador com uma amiga, sem saber direito que curso iriam fazer. A escolha se deu quando as duas visitaram o campus de nutrição, acharam lindo, e resolveram que iriam estudar lá. O mais engraçado é que de um processo decisivo tão fútil veio o trabalho que seria a paixão da vida inteira.

Em Salvador minha mãe conheceu meu pai, o que gerou um casamento de 20 anos, e minha irmã e eu, mas não acho que tenha sido a melhor das decisões. Se eu estivesse por perto naquela época eu teria dito “amiga, desencana, desiste desse boy, que ele é problema”, “eu sei, é gato, mas é problema”, “certo, ele vai ser um bom pai, mas eu tô dizendo, ele é problema”.
Mas enfim, nossos pais fizeram as escolhas deles, e eu imagino que pareceram as melhores no momento em que foram feitas.
E sabe nesses filmes de assalto, quando o chefe abre um desses papeis enrolados e cheios de planos detalhados?
Essa pessoa era a minha mãe. O mundo acabando e ela tava lá, fazendo listas e dizendo o que a gente deveria fazer, sempre.

Ninguém resistia à liderança e à sensatez da minha mãe, nem a família dela, nem as pessoas do trabalho, e em muitos momentos, nem o meu pai. Ela era a personal coach de todos nós.
Meu pai conseguiu passar no concurso da Secretaria da Fazenda porque minha mãe fez a prova junto com ele só pra motivar. E ele só terminou a especialização em direito tributário porque ela sentava ao lado dele, cobrando a “lição”, como se ele fosse tão criança quanto a gente.
Não que meu pai fosse incapaz, mas a tendência que eu e minha irmã temos ao desespero tinha que vir de alguém.


Engraçado é que eu não tenho tantas lembranças de infância da minha mãe como tenho do meu pai. Ela sempre dizia que isso era injusto, porque nos meus primeiros anos ela só trabalhava meio período e ficava comigo o resto do tempo.
Que culpasse a natureza então, de só me dar memórias da época em que ela passava o dia inteiro fora. Por anos meu pai trabalhava em esquema de plantão, cinco dias em algum lugar bem remoto do estado, e dez dias em casa, grudado na gente.

Mas eu tenho memórias super queridas com ela. Quando eu estava na alfabetização minha mãe foi à minha escola falar sobre alimentação saudável e coisas bem básicas de comida. Como os níveis de entendimento das crianças eram diferentes, ela falava um pouquinho em cada turma.
Quando ela estava na sala da primeira série, que era vizinha à minha, eu recebi autorização de assistir.
E quase que eu explodi de orgulho vendo minha mãe falar do trabalho da vida dela. Mesmo que de forma adaptada pra uma turma de crianças de sete anos. E várias delas fizeram perguntas, e todas aplaudiram muito no final. “Minha mãe é muito foda”, pensei eu, provavelmente sem usar essa expressão.
Quando ela terminou de falar na minha sala eu corri pra abraçar as pernas dela, que era o que eu alcançava naquele tempo. E eu não queria largar de jeito nenhum, e nem teria largado mesmo se não fosse a interferência da professora.

Logo que casaram meus pais continuaram morando em Salvador, mas não por muito tempo. A coisa ficou feia, meu pai ficou desempregado, e resolveram ir pra Itabuna, onde minha mãe conseguiu facilmente um emprego no hospital Santa Cruz. Nos anos 80 não havia muitas nutricionistas, não no interior da Bahia, pelo menos.
Minha mãe foi uma pioneira lá em Itabuna, e aparecia na TV o tempo todo, principalmente depois que passou a trabalhar em um órgão da secretaria de saúde do estado. Gravamos todas essas aparições, mas as fitas não existem mais, o que é uma pena. Eu não tenho nenhum registro em vídeo da minha mãe, e eu daria tudo pra poder ouvir a voz dela de novo.
Pra ela o maior problema do Brasil era a desnutrição infantil. Como desenvolver um país se muitas crianças não conseguem nem completar o primeiro ano? E quando muitas das que conseguem ficam com sequelas pro resto da vida?
Minha mãe foi coordenadora do Fome Zero em Itabuna, e mesmo antes disso eu já convivia em casa com apostilas da Pastoral da Criança e da Ação da Cidadania, aquele projeto do Betinho.

Mesmo amando muito o meu pai, eu já me peguei várias vezes pensando em como seria a vida se eu fosse filha de outro cara. Um menos temperamental, mais permissivo, e com quem a convivência fosse sempre fácil.
Já pensei em como seria ter outra irmã também (foi mal aí Thaís), mas eu nunca, nunca mesmo, pensei em ter outra mãe. Pra mim ela era o que havia de melhor.
E com isso eu não quero dizer que ela era perfeita, porque obviamente não era. Ela implicava de vez em quando com meu cabelo, e sempre fazia aquela pressão pra que eu alisasse.
Ela usava métodos passivo-agressivos pra conseguir confissões, que começavam sempre com um “olha que engraçado esse sonho que eu tive” e seguiam com o que ela queria que a gente confessasse.
E eu não sei se era defeito ou qualidade, mas ela também tinha o que nós chamávamos de “sensor aranha”, que era a habilidade de quase sempre adivinhar o que a gente escondia dela.
O que era especialmente desagradável pra minha irmã, porque eu nem escondia tanta coisa assim. Na verdade por boa parte da minha vida minha mãe era uma aliada pra esconder coisas do meu pai (ela deixava fazer tudo, ele não deixava fazer nada).

Só comecei a brigar sério com a minha mãe depois que eu comecei a namorar, com 17 anos. Até então nossa relação era super pacífica e cooperativa, eu não era só uma filha, era o braço direito na luta pra criar Thaís (que dava muito trabalho) e sobreviver àquele casamento falido que ela insistia em manter.
Com a minha mãe eu tive o único emprego da minha vida, fui secretária dela dos 13 aos 14 anos, numa época em que ela tinha resolvido trabalhar em consultório. Eu adorava ficar lá, com uma mesa só pra mim, me sentindo a pessoa mais séria do mundo.
Quando eu virei comunista na adolescência ela comprou pra mim O Manifesto do Partido Comunista e uma versão adaptada de O Capital (que eu li até a metade e só entendi uns 10%). Quando eu quis estudar na UnB ela aproveitou uma viagem a Brasília e me trouxe várias fotos de lá.
Mas quando eu quis cursar filosofia ou história, aí a coisa pegou. Porque livros ela comprava todos os que eu quisesse, mas levar um curso de humanas a sério era vandalismo. E assim ela teve co-participação na culpa de eu ter ido parar no curso de direito.

A mãe que eu me lembro não era muito de abraço e beijo como o meu pai, mas ouvia com atenção nossos problemas e entendia até as questões mais infantis. Ela deve ter sido uma das últimas pessoas a abandonar a permanente no cabelo, mas estava sempre tão elegante que ninguém reparava no anacronismo.
E mesmo sendo uma fiel defensora do método científico, passou por quase todas as religiões praticadas no Brasil. Minha mãe era viciada em rituais religiosos, chorava em todos, especialmente em procissões. Houve a fase católica, a fase espírita (a minha favorita) e a da umbanda, que era desagradável, mas só porque minha mãe queria obrigar a gente a tomar uns banhos estranhos.
Quando ela foi pra igreja Batista ficamos todos aliviados pelo fim dos banhos, mas ela ficou mais chata do que nas religiões anteriores. Mas tudo bem, ela estava feliz, e aceitava mais ou menos o ateísmo das filhas. O que não impediu, entretanto, que eu fosse arrastada pra um show do Diante do Trono, e Thaís pros retiros de Carnaval da igreja.
Minha mãe ainda aparece de vez em quando nos meus sonhos. Nos do ano passado ela ajudava a gente com a doença do meu pai, mas nos desse ano ela só aparece como na minha infância mesmo. Permanente, ombreiras, maquiagem pesada. Eu não consigo ver uma novela antiga no Canal Viva sem lembrar dela.

Eu não me pareço fisicamente com minha mãe, ao contrário da minha irmã, que fica cada vez mais a cara dela. Eu sou quase a cópia perfeita do meu pai, com a exceção da barba e de outros detalhes óbvios. Daí que eu e Thaís somos bem diferentes, e as pessoas nem acham que somos irmãs.
Mas quando eu era pequena eu desejava demais ter uma parte do corpo como a da minha mãe. Não, não eram os peitos, esses acabaram vindo. Era o calo no dedo médio da mão direita.
Pode rir, mas pensa comigo: esse é o calo que a gente consegue por segurar um lápis ou uma caneta por muito tempo. Era o símbolo do mundo dela, o mundo da erudição e da escrita, ao qual eu também queria pertencer.
E não é que eu cheguei lá? No calo, pelo menos.


Eu não estava com a minha mãe nos seus últimos momentos, e mesmo os meses de doença ficaram pouco marcados na minha cabeça. Pra mim ela sempre aparece sentada na mesa, envolvida em mil projetos, mas cedendo um lugar pra que eu pudesse desenhar ou escrever ao lado dela. E isso valia como um abraço.
Sim, a minha vida seria muito melhor se ainda pudéssemos contar com ela. Continua sendo estranho não poder usar aquela palavrinha de três letras que foi uma das primeiras que eu aprendi.
Mas quer ler um clichê? Ela continua se fazendo presente, mesmo dez anos depois de ter morrido. E ela continua a estar certa, e mais ainda, porque em muitas coisas só descobrimos agora que ela tinha razão.
Eu passei só 21 anos ao lado dela, e eu sei que a ausência vai acabar durando mais do que isso. Esses foram só os primeiros dez anos, e é provável que nos próximos dez eu já não tenha meu pai também. Minha mãe não viu a minha formatura nem o meu casamento, meu pai também não vai ver todo o resto.
Mas eu não vou honrar o legado da minha mãe lamentando pelas tragédias futuras. Vou tentar ser feliz hoje, porque era isso que ela esperava de mim.
Isso e uma carreira de sucesso, mas não se pode ter tudo, né mãe?

Se você quiser continuar essa conversa eu tenho uma newsletter onde eu escrevo com mais regularidade. É só assinar que chega tudo bonitinho no seu e-mail, e eu juro que só coisa legal, nada de spam.