Encontrando fantasmas das minhas avós

A rua voltou a ser de paralelepípedos, como na minha infância. Na esquina eu vejo o terreno baldio onde hoje é uma padaria, e nas calçadas as crianças que são mães das que não brincam mais na rua. A casa da minha avó Safira fica bem no meio disso tudo, comprida e sem janelas laterais, como eram as construções do centro de Itabuna.

Meu avô Otávio continua o guardião da porta, e me estende a mão. É a bênção que ele quer que eu peça. Quando criança eu achava que “bença, vô” era uma senha, uma frase sem sentido pra ser admitida naquele lugar em que eu era amada por todo mundo.

Eu conhecia meu avô desde sempre, mas nunca conheci aquele homem de verdade. Nunca conversamos, e eu nunca pude perguntar o que ele realmente achava das coisas. Tudo que eu tenho são relatos de segunda mão, do tempo antes do acidente, de quando a mente dele ainda funcionava. Meu avô era um desconhecido familiar.

E não foi diferente agora.

Entrei na casa, chamei pela minha avó, e ela respondeu que estava no quintal. Atravessei os corredores compridos, a casa inteira era um corredor escuro, e a luz que vinha do fundo me deixou meio tonta. Minha avó estava sentada, escolhendo feijões, como se fossem diamantes.

É tão bom abraçar a minha avó, e sentir aquele cabelo lisinho, de quem nem precisava pentear. No rosto dela todos os traços que eu não herdei, e o tom de pele tão claro, nada a ver com o meu. Quem adivinharia o nosso parentesco, não fosse pela semelhança dos olhos e pela cegueira do amor?

— Mas vó, porque você tá mexendo nesse feijão?

— Eu preciso trabalhar, Camila. Se eu parar de trabalhar, é o mesmo que começar a morrer.

— Mas você já morreu, vó.

Ela coloca a mão na boca, e ri com a cabeça inteira. Os olhos bem apertados, que quase nem dava mais pra ver.

— É verdade, mas agora eu já comecei com o feijão, né?

— Vó, eu vim de tão longe. Vamos fazer outra coisa?

— Você quer olhar o Álbum? Pra eu te mostrar o povo do Norte?

Minha avó era sergipana, tinha vindo pra região cacaueira ainda criança, junto com a mãe dela. Assim como milhares de outros sergipanos. O povo do Norte eram os parentes que ficaram, e cujos nomes eu jamais decorei. O Álbum era da minha bisavó, e com a morte dela passou pra minha avó. Pela regra de mulheres mais velhas ele acabaria passando pra minha tia Lucineide, que não tinha filhos, e então seria da minha mãe, e depois meu.

O Álbum tinha uma foto de cada familiar, até chegar em mim, em Thaís e no meu primo Luiz Eduardo. Tudo isso passando por postais de Aparecida, Bom Jesus da Lapa e fotos de João Paulo II. Era um álbum desses de colar, com um papel meio verde, e uma folha transparente que ficava por cima.

— O Álbum não existe mais, vó. Eu procurei por ele depois que Tia Lucineide morreu. Eu e Tia Norma achamos no quartinho dos fundos, com as folhas enrugadas e emboloradas. Salvamos muitas fotos, mas o Álbum tivemos que jogar fora.

— Ah, que pena então, você gostava tanto dele. Mas paciência.

Nem depois de morta ela perdia aquele otimismo teimoso. O mesmo que a minha mãe também tinha.

Nessa momento eu percebi que duas senhoras esperavam na porta da frente. Meu avô falava alto coisas incompreensíveis, como ele sempre fazia com as visitas. As duas mulheres até bateram na porta, eternamente aberta, mas resolveram ir entrando, já que ninguém apareceu pra atender.

— Ai Camila, eu esqueci que elas vinham! Elas queriam conversar com você!

Uma das senhoras tinha os olhos verde-acastanhados, assim como os meus. A outra eu não consegui enxergar direito. As duas esperavam que eu falasse alguma coisa, mas eu não sabia o que dizer. Só indiquei as cadeiras, porque gente em pé me dá agonia.

Eu sabia quem eram, mas só uma delas eu reconhecia. E foi só ela que eu cumprimentei.

— Tudo bom, Cotinha?

— Tudo bem, Camila. Mas quando eu era viva você me chamava de vó, lembra?

Eu lembrava.

— Essa aqui é Anita, minha irmã. Você não lembra dela, mas ela te conheceu, você muito pequena. Seu pai gostava muito dela, como ele nunca gostou de mim. Ele te levou na casa dela, há muitos anos, e você brincou com seus primos, mas você não vai lembrar.

Faltava uma irmã, eu sabia que eram três.

— Lili não veio?

E dessa vez foi Anita que respondeu:

— Não, ela não quis. Lili é muito chata, como você lembra.

Lili era realmente muito chata. Sempre provocando Cotinha, quando meu pai se recusava a chamar a pobre de “mãe”.

Estavam ali a minha avó materna, Safira, a minha avó paterna, Maria (que todo mundo chamava de Cotinha) e uma tia-avó. Mas tinha gente faltando. Onde estava a minha avó Izaura, mãe adotiva do meu pai?

E foi minha avó Safira que disse:

— Sua mãe não quis que ela entrasse. Izaura é uma bruxa, você sabe. Bruxa de verdade, de feitiço e tudo.

— Minha mãe tá aqui também?

— Não. Nem Lucineide, nem seu tio Geraldo. Só Eduardo que tá descansando no quarto. Mas você não conheceu Eduardo, ele morreu antes de você nascer. Ele tá muito cansado ainda, acho que nem vem aqui pra falar com vocês. Eu tô muito cansada também, e ainda esse problema com a sua avó Izaura.

Eu nunca consegui gostar de verdade da minha avó Izaura, apesar do carinho que ela tinha comigo. Parte era pelo modo bruto como ela tratava a empregada, que era minha amiga. E ainda tinha essa conversa da minha mãe, de macumba e sei lá o quê. Eu não acreditava, mas a barreira foi feita, e amor de vó eu só tinha mesmo por Safira.

E aí Cotinha resolveu falar:

— Izaura inventou que eu tinha dado seu pai numa sacola, Camila. Era mentira, eu entreguei o bebê pra ela no hospital. E eu nunca perdi seu pai de vista, eu sabia onde eles moravam. Eu visitava seu pai, eu dizia que era mãe dele, e ele saía correndo. Seu pai nunca gostou de mim.

Anita segurou a mão de Cotinha, e continuou:

— Foi muito difícil quando Cota ficou grávida, Camila. Eu também tava grávida, e foi tudo tão confuso. Mas eu perdoei todo mundo, perdoei minha irmã, mesmo ela ficando grávida do meu marido.

— Que tinha sido namorado dela antes — eu disse

— Sim, namorado dela, mas casado comigo. Mesmo assim, eu recebi seu pai em casa, tratei como parente, nunca chamei de bastardo, como ele fala que meu filho chamou. Ninguém na minha casa odeia seu pai.

Meu avô paterno Péricles, a causa de toda essa confusão familiar, morreu antes de eu nascer. Nunca vi nem em foto, e eu só chuto que ele devia ter a pele bem escura por ter visto o contraste entre Cotinha e meu pai.

Engraçado ver juntas naquele quintal três mulheres tão brancas falando dos homens negros que eu só conheço de ouvir falar, os dois avôs tão ausentes da minha vida, ainda que um deles estivesse sempre ao alcance da vista.

Quando eu nasci, meu avô Otávio ficou decepcionado, porque ele esperava um menino. Era a primeira gravidez da minha mãe, a favorita das filhas, e o primeiro neto que ele teria. Mas acabou sendo neta. “Mulher?” ele disse com desprezo, algo que a minha mãe nunca esqueceu e sempre repetiu pra mim.

E aí veio o acidente de carro, quando eu tinha poucos meses, e ele nunca se recuperou. E eu nunca soube se ele mudou de opinião sobre mim.

Eu também nunca soube o que o outro avô pensava do meu pai. Até onde me contaram, ele nunca fez uma visita.

Minha avó Safira passa a olhar pra porta da frente, sempre guardada pelo meu avô:

— Esse homem me mantinha presa quando era são, e me manteve presa quando ficou doente. Nem depois de morta ele me deixa em paz.

Cotinha e Anita abraçaram Safira, porque elas sabiam. Eram todas mulheres da mesma época, que tinham vivido situações tão diferentes, mas que no fundo eram a mesma coisa.

Eu fiquei lá observando, com medo de interferir e estragar o momento. O que eu sabia daquelas mulheres? Da minha avó Safira eu conhecia a infância na roça, o cuidado com os irmãos, as histórias divertidas de antigamente, a recusa em fugir com meu avô, a insistência em casar de verdade, mesmo ele sendo filho de um coronel de cacau e ela sendo bem mais pobre e nunca aceita pela mãe dele.

Eu não me lembrava de Anita, eu tinha uns três anos quando nos encontramos. Eu nem sabia direito o nome dela até esses dias, quando o filho dela me ligou.

Cotinha eu vi algumas vezes, fomos na casa dela quando eu era pequena, a mulher que havia dado meu pai pra outra criar porque “era muito pobrezinha”, na mentira carinhosa da minha mãe. Eu pensava nela às vezes, sozinha lá em Planalto, uma cidade muito fria no sudoeste da Bahia, não muito distante de Vitória da Conquista, onde meu pai nasceu.

E então Cotinha se dirige pra mim:

— Você conhece a família da sua mãe, mas você não conhece o povo do seu pai. Você não sabe direito quem nós somos, apesar de você ter os meus olhos, e se parecer comigo quando eu era mais nova. É por conta da minha gente que você, Thaís e seu pai não conseguem ter a cabeça em paz. Somos todos deprimidos, você sabe, e eu conferia portas, e checava o gás várias vezes, como o seu pai também fazia. Eu ficava dias no quarto sem falar com ninguém, como você viu também o seu pai fazer. Nós estamos em vocês, Camila, seu pai fugiu tanto disso, não queira você fugir também.

Eu olhei pra Cotinha, e perguntei sinceramente:

— Mas o que eu posso fazer?

— Você pode conhecer as nossas histórias, conversar com os vivos, já que nós os mortos só podemos te contar o que você já sabe. A paz só chega com a memória, e essa é uma herança que não se pode recusar.

Eu sabia que ela tinha razão. Por muitos anos a família biológica do meu pai era uma curiosidade pra mim, algo engraçado pra contar pros amigos. “Eu tenho duas avós paternas, vejam só, e os irmãos do meu pai são na verdade irmãos-primos”. Até que a minha mãe morreu, meu pai desenvolveu Alzheimer, e eu e minha irmã nos afastamos do resto da família por não suportar mais traições e desapontamentos.

De repente eu me dei conta que existia uma multidão de outros parentes até então invisíveis. Nas fotos que me mandaram eles aparecem em festas de Natal e aniversários, aqueles vários irmãos do meu pai, as pessoas a que ele só se referia como “o outro lado”.

Minha avó Safira segura na minha mão, me dá um beijo no rosto e me diz:

— É melhor você ir, já está na hora.

Eu falhei em não chorar. Eu queria tanto continuar lá pra sempre, naquela casa que era também minha, e hoje não é mais.

Cotinha não ousou me abraçar, mas concordou que eu tinha que ir embora:

— Seu lugar é com os vivos. Se você pode fazer alguma coisa por nós, é continuando lá. Não se preocupe, nós temos muito o que fazer aqui. Sua avó Safira vai me mostrar a máquina de costura dela, a velha Singer, que eu também tinha.

A velha Singer, onde foram feitas tantas roupas de boneca, com retalhos que as minhas tias deixavam no chão. Eu não entendia como Tia Norma e Tia Leda podiam preferir máquinas elétricas, quando a outra era muito mais bonita e divertida. A gente tinha que pisar pra ela funcionar!

E assim eu saí, deixando as três velhinhas entretidas com a relíquia que todas elas conheciam tão bem. A casa continuava escura, mas de alguma forma a luz ainda chegava lá. Na porta eu me despedi do meu avô, e ele repetiu o que dizia sempre:

— Eu lhe mato, sua peste!

Que era o jeito dele de dizer “até mais, eu também vou sentir a sua falta”. Ou pelo menos era o que eu queria acreditar que ele dizia.

(Gif Fancy Machine, por Marie Chapuis)

Publicado por

Camila Freire

Humorista amadora e desistente profissional Além de um blog tenho também uma newsletter sobre luto, doenças, família, sofrimento, redenção, bolo de chocolate e eu rindo de tudo isso. Com gifs. https://www.getrevue.co/profile/tempopracontar

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