Nosso corpo, esse estranho conhecido

Se você pensar bem, seu corpo até pode pertencer a você, mas nem é tão seu assim. Não falo em termos jurídicos, porque o direito é uma dessas ficções que a gente cria pra ordenar um pouco o mundo. Também não falo de religião nem desse deus que por algum motivo teria pensado em você enquanto fazia a Via Láctea e os dinossauros.

É um lance mais pé no chão mesmo, biológico, eu me refiro a esse corpo limite físico que ocupa um lugar no espaço e que os documentos da sua carteira dizem que é a sua pessoa. Pois é, você não manda muito nele, a começar pela foto da sua identidade que eu sei que você acha um horror.

Quando eu era criança eu ficava admirada com o processo todo que levava à cicatrização de uma ferida. Primeiro a dor e o sangue, depois o Merthiolate — o sadismo permitido aos pais — e aí o Band-Aid que segurava o sangue, e depois não tinha mais sangue por conta da barreira que o meu próprio corpo tinha construído pra que ele não saísse mais.

E sendo o corte desses bem bobos em pouco tempo era como se ele nunca tivesse acontecido. Parecia mágica, obra da mesma proteção invisível que também mantinha o coração batendo, os pulmões funcionando e o estômago esvaziando pra que mais comida pudesse chegar.

A incrível proteção invisível só não me impedia de cair de novo e de novo. Não me salvava de ser um fracasso em todos os esportes coletivos que eu tentava na escola, nem segurava as lágrimas que acabavam escorrendo no meu rosto quando ninguém me escolhia pra time nenhum.

Minha mãe dizia que eu tinha pouca coordenação motora. O que eu não entendia direito, mas achava que devia ser bem ruim.

Eu também fui alertada pela minha mãe das grandes transformações que aconteceriam comigo um dia. Eu já sabia que peito iria crescer, que muito sangue iria escorrer sem que eu tivesse controle e que tudo isso era muito normal e necessário pro bebê que ninguém me perguntou se eu iria mesmo querer ter.

A proteção invisível agora era uma programação invisível, que eu aprendi depois que era parte genética e parte resultado da interação com o ambiente. Eu achava que eu era muito eu, mas eu era só mais uma Homo sapiens sapiens.

Você já parou pra pensar em como é estranho ir ao médico? Uma pessoa que você não conhece sabe mais do funcionamento do seu corpo que você, porque ela aprendeu a partir de outros corpos que você também não conhece.

A gente recebe tantas mensagens confusas ao longo da vida. Às vezes é pra odiar esse corpo, porque ele não é como deveria ser: magro, sem espinhas, estrias, celulite, flacidez, sei lá. Mas também é pra aceitar como ele é, porque todo mundo é bonito do seu jeito e só gente muito infeliz tenta mudar o que a natureza deu.

Eu sempre achei nada a ver fazer com que uma pessoa odeie o próprio corpo, mas essa mensagem de amor a todo custo também me parece opressiva. Amor é um negócio muito sério pra vir acompanhado de um “tem que”.

Quando eu tinha seis anos eu fazia natação num clube que era conhecido por ganhar um monte de prêmios. Eu não estava lá por conta disso, eu só queria nadar, porque eu era como uma tartaruga marinha ou um jacaré, funcionava melhor na água que na terra. Mas eu competia, porque todo mundo lá competia também.

O problema era a menina da minha turma que era também parte da equipe, Sabrina. Eu queria dizer que a gente não se dava muito bem, mas isso seria um eufemismo, eu tentava ignorar a presença dela, ela já tentou me afogar na parte funda da piscina.

No ônibus sempre nos colocavam juntas, e no revezamento era sempre uma depois da outra. Eu achava que era perseguição, mas não podia fazer muita coisa, eu só aceitava que nós éramos parte do mesmo time. Na hora de competir a gente cooperava e esquecia as diferenças, pra depois voltar a brigar do mesmo jeito nos dias normais.

E se você estiver me lendo, Sabrina que fazia natação na Telebahia em Itabuna entre os anos de 91 e 92, saiba que eu perdoei você ter tentado me matar várias vezes.

Meu corpo é um pouco como Sabrina, estamos presos juntos, somos da mesma equipe nessa competição interminável que é o mundo, mas isso não quer dizer que ele vá muito com a minha cara

Neste exato momento eu sinto dor. Não só porque eu tenho fibromialgia, mas também porque eu estou passando por uma fase de transição de remédios, já que o antidepressivo anterior me deu bruxismo e eu ainda não achei um substituto que não me faça querer destruir a humanidade toda.

Eu me sinto como naqueles episódios de Pinky e Cérebro em que o Cérebro usa um robô gigante pra interagir com os humanos. O robô era meio bizarro, às vezes emperrava, ou batia em si mesmo e quase sempre frustrava os planos do pobre Cérebro de querer dominar o mundo.

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Em geral eu acho meu corpo bem neutro, mas muitas vezes é difícil demais não odiar o que parece estar tentando te destruir. Pra falar a verdade eu nem acredito realmente no papo dessas pessoas que são só amor pelas suas carcaças como num comercial da Dove que não acaba nunca.

Você não precisa amar o seu corpo pra ter algum respeito por ele, ou pra cuidar dele, e também não precisa odiar pra ser realista. Pelo menos eu acho. Na verdade meio que tanto faz, porque ainda não dá pra existir sem um corpo, e se você abrir mão dele, abre mão da sua consciência também, porque ela é cérebro, córtex pré-frontal, essas coisas.

Na verdade eu tô fazendo essa distinção entre meu corpo e eu só pra explicar o meu raciocínio, mas eu nem acho que eu exista fora do meu sistema nervoso, portanto corpo.

A essa altura meu argumento já tá ficando circular, então deixa eu voltar pra foto do filme lá de cima. Pessoal da minha geração já cansou de ver Inimigo Meu na Sessão da Tarde, aquele pesadelo minimalista futurista que a gente amava assistir.

Num futuro bem futuro a nave de um humano acaba caindo num planeta super hostil e que nem parecia habitado. O problema é que também cai lá um sujeito de uma raça alienígena, justamente a que vivia em guerra com a humanidade há sei lá quanto tempo.

No começo eles se odeiam demais, lógico. Eles não falam a mesma língua, o ET parece feio e esquisito, e trolagens acontecem. Mas eles só têm um ao outro, e o planeta onde eles estão presos é, tipo assim, uma bosta.

Ao longo de vários anos eles aprendem a conviver e cooperar, porque é o único jeito de sobreviver, ficam amiguinhos fofos e até constituem família. Ou quase isso, já que o ET fica grávido de forma assexuada, morre, e o humano acaba tendo que cuidar do menino. Parece spoiler, mas tá tudo no trailer.

Eu espero não ficar grávida de uma forma assexuada e morrer por isso, mas de resto é bem assim que eu me sinto em relação ao corpo que eu tenho. E eu só posso torcer pra um dia a gente se dê bem como o Dennis Quaid e o Louis Gossett Jr nesse filme.

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E num lugar sem esperança eles acharam o amor, como já cantava a Rihanna

Publicado por

Camila Freire

Humorista amadora e desistente profissional Além de um blog tenho também uma newsletter sobre luto, doenças, família, sofrimento, redenção, bolo de chocolate e eu rindo de tudo isso. Com gifs. https://www.getrevue.co/profile/tempopracontar

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