Eu estou acostumada a sofrer sozinha ou quase sozinha. Quando minha mãe morreu éramos só eu, Thaís e meu pai. Quando meu pai adoeceu éramos eu, Thaís e Lucas. Eram lutos tão particulares que eu demorei pra conseguir compartilhar com os outros, esses outros que não sofriam como eu, só pegavam uma dor de segunda mão em consideração a mim.
O velório da minha mãe foi cheio de pessoas que eu não conhecia, ou conhecia muito pouco. Eu queria não ter ido, preferia ficar em casa com as minhas amigas e as minhas lembranças, mas meu pai achava que não valia a pena comprar briga com a minha família materna.
Não que isso tenha adiantado, a briga foi comprada de qualquer jeito. Entre nós e esses parentes se abriu uma cratera que a minha irmã nem se deu ao trabalho de pular. Eu até tentei, mas fiquei pendurada na ponte de corda que se rompeu, como num filme do Indiana Jones.
Eu sou meio que uma especialista em dor, luto, sofrimento e etc, você que me lê há muito tempo já sabe. Aliás, essa própria newsletter foi criada em função disso, numa época em que eu queria fugir do Facebook e continuar conversando com as pessoas, só que escondida.
Por isso eu digo que o que aconteceu naquele domingo fatídico foi como uma morte também.
O país em que eu cresci morreu, assim como o país que eu queria. Tá certo que era uma morte anunciada há semanas, e eu acho até que sofri mais antes, mas sempre dá um geladinho no corpo quando o médico avisa que podem desligar os aparelhos porque o doente já se foi.
O meu país não é só meu, eu sei, ele também é de milhões de pessoas. A maior parte desses milhões comemorou a morte como se fosse vida, usando a bandeira que antes era minha, mas que agora serve mais como um alerta de perigo.
E outros tantos milhões, menos milhões, mas ainda assim milhões sofreram junto comigo.
Essa nossa dor já nasceu coletiva, ainda que as reações variem. E graças a ela eu me aproximei de desconhecidos, de uma multidão no Largo da Batata em São Paulo, de passantes que viam meus adesivos e pediam igual e de gente na fila de embarque na volta pra Belo Horizonte.
Na verdade antes do golpe final era uma dor meio misturada com esperança, uma esperança tímida, mas que motivou atos que eu nunca vou esquecer. A mesma internet que trouxe a nossa queda também nos mostrou as banquinhas de #viravoto espalhadas por todo o Brasil.
Desde a nossa redemocratização que não se via uma eleição sofrida como essa. Talvez nunca tenha existido uma eleição como essa, se bem que eu não sei né, os apoiadores de Getúlio Vargas deviam estar muito chateados mesmo com a República Velha pra terem ajudado na “revolução” de 1930.
Se já não estiver claro o suficiente, deixa eu dizer: eu sou uma pessoa de esquerda. Toda a minha família sempre foi de esquerda, até os meus parentes que não prestam são de esquerda.
A minha família brigava por absolutamente tudo menos por política, exceto uma vez em 2010 quando aquela que não deve ser nomeada se recusou a votar na Dilma porque achava que ela era “abortista”. Meu pai disse que isso era ridículo, os dois ficaram semanas sem se falar e coube à trouxa que vos escreve trabalhar pela paz. Acho que a pessoa em questão no fim das contas votou na Marina.
Meus pais votaram no Lula todas as vezes em que ele se candidatou. E não tinha uma viagem a Salvador em que meu pai não lembrasse de quando Lídice da Mata foi prefeita e enfrentou as forças onipresentes de ACM.
É sempre uma felicidadezinha ver que tanto Lídice (hoje PSB) quando Alice Portugal (PCdoB) seguem sendo eleitas lá no meu torrão natal. Até sigo as duas no Twitter.
Mas enfim, é normal pra muitas famílias brasileiras (exceto a minha) brigar por política. É normal pra famílias no mundo inteiro. O que seria de nós aqui sem aquele PT x PSDB maroto a cada quatro anos pra presidente?
Só que essa eleição foi muito diferente. Porque veja, apesar de eu votar no PSOL que é onde meu coração está, no PCdoB quando aparece alguém legal e no PT quando é o jeito, eu reconheço que os partidos de direita agem dentro da democracia. O DEM um pouco menos, né? Mas ainda assim.
O que apareceu nessas eleições foi uma figura tão aberrante e monstruosa que por algum tempo a gente nem soube o que dizer. A gente nem queria pronunciar o nome, e aí inventamos os melhores apelidos.
Nós rimos porque ele parecia um elo perdido, uma criatura fora do seu tempo. Achávamos que ele não tinha chance, porque a rejeição era absurda. Acreditávamos tanto que a nossa democracia estava consolidada que nem sentimos a ameaça, não lembramos que ao contrário de outros países da América do Sul — Uruguai, Argentina, Chile e Peru- nós nunca punimos os criminosos da ditadura. E como isso fez diferença.
A gente não aprendeu nada lendo sete livros do Harry Potter e vendo mais um tantão de filmes. Não soubemos reconhecer que os nossos próprios Comensais da Morte estavam por aí, só esperando um chamado pra voltar.
Eu acho que nunca vou conseguir olhar do mesmo jeito pra pessoas que votaram no Bolsonaro, ou que podendo votar escolheram o nulo ou o branco pela cegueira do antipetismo. É uma repulsa que apenas vem. Nem é algo que eu controle, eu sei que esses eleitores formam um grupo muito diverso, indo de sádicos defensores de tortura que resolveram sair do armário até gente muito inocente, que acreditou de verdade em cada mentira que recebeu por Whatsapp.
Eu li O Ódio como Política na época em que a Boitempo disponibilizou o ebook gratuitamente, e eu entendi mais ou menos o que estava acontecendo.
Mas pra mim realmente não dá, eu penso nessas pessoas e é como se algo da humanidade delas tivesse sumido. Eu sinto como se mesmo quem sempre foi cordial comigo tivesse me agredido pelas costas. Ainda mais porque eu teria votado em qualquer partido de direita, até mesmo no DEM, pra impedir o pior de acontecer. Teria feito campanha até.
Daí que eu não sabia o que dizer pra pessoas que viviam o conflito em suas próprias famílias. Como agir quando parentes próximos de pessoas LGBTs ajudavam a eleger o discurso do extermínio? O discurso que também era o da perseguição aos professores, da destruição da Amazônia, do fanatismo religioso, da misoginia, do racismo e da exaltação de torturadores?
Como combater o fascismo dentro da sua casa, vindo das pessoas que você mais ama? Eu realmente não sei. Eu excluí da minha vida todo mundo que tinha passado pro outro lado, o que foi doloroso, mas não tanto quanto o que outras pessoas tiveram que enfrentar.
E aí veio um twist na narrativa, eu me reaproximei da família da minha mãe. Lembra quando eu disse lá no comecinho do texto, que um fosso tinha sido aberto entre nós? Pois é, nessas eleições a gente passou um telefone de lata por cima dele.
Minhas tias maternas, e até parentes de segundo grau eram todas #elenão. Eu começava o dia recebendo mensagem de bom dia com a cara do Haddad e repassando outra em troca. Compartilhamos nossos medos, esperanças, e o orgulho de a Bahia ter sido quase inteiramente vermelha nesse segundo turno.
Porque a sua bandeira até pode nunca ser vermelha, mas a minha sempre foi.
Eu queria poder perguntar à minha mãe como foi quando os exilados voltaram pra casa depois da Lei de Anistia. Eu queria poder pedir ao meu pai mais detalhes sobre o professor da escola dele que sumiu durante a ditadura.
Tanta gente canta a letra de Como nossos pais hoje em dia. Nessas vozes existe a surpresa e o horror de quem se vê numa letra escrita há mais de 40 anos num contexto que voltou a ser o nosso.
E sim, o sinal está fechado pra nós, mesmo aqueles de nós que já não são tão jovens. Mas o sinal, ele sempre abre um dia. Se não abrir é porque ele tá quebrado e a gente pode atravessar correndo no meio dos carros mesmo.
Quando o #elenão virou #Haddadsim eu voltei às ruas de Belo Horizonte, dessa vez com dois livros pra distribuir na multidão. Foi tudo lindo, mas a multidão já não era tão grande assim, e isso deu uma angústia imensa.
No fim eu e Lucas fomos à Praça Sete, que aqui é sempre o começo de tudo, e nos abraçamos por muito tempo, tentando nos amparar um no outro, reforçando a sorte que temos de ter um ao outro, porque o mundo só fazia girar. Eu comentei que a gente parecia ter ido parar no 1985 distópico do De Volta para o Futuro II, aquele em que o Biff virou o senhor da cidade.
E eu juro que nesse momento, nesse exato momento, passou um cara todo estiloso com um aparelho de som gigante TOCANDO FUNK DE PASSINHO! Aquele mesmo que fazia o maior sucesso nos bailes dos anos 80. Eu acenei e ele fez um joinha pra mim.
Só pode ter sido um sinal. Não importa quantos anos o Brasil acabe retrocedendo, a gente sempre vai poder seguir em frente do jeito que der. Seja com Belchior, seja com o funk de passinho.
E que ninguém largue a mão de ninguém, porque pra esse luto virar luta nós só podemos estar todos juntos. Mas as pernas, essas têm que estar livres pra gente poder chutar os fascistas.
E que chegue o primeiro de janeiro de 2019, porque nós não vamos deixar que seja o primeiro de janeiro de 1964.
