Um casamento em 10 anos de objetos

No fim do mês passado eu resolvi trocar o colchão que eu tinha há dez anos e isso acabou sendo uma ideia bem idiota. Era o colchão de quando eu me casei com o Lucas, o nosso primeiro móvel, aquele que foi entregue a tempo enquanto que todos os eletrodomésticos atrasaram.

Na época passamos umas duas semanas só tendo lugar pra dormir, mas sem fogão nem geladeira, comendo na rua, comprando coisas que não estragavam, mas eu tava feliz, eu tava casada, morando com ele, e todo recém-casado é um ser trouxa e deslumbrado.

Mas dez anos já são muito tempo pra uma pessoa, imagina pra um colchão. Ele ainda me acomodava bem, eu não sentia dor, mas sempre ficava um buraco, e mesmo rodando o lado ele continuava afundando.

Por causa da fibromialgia eu passo muito tempo na cama, deitada ou sentada, e chega uma hora em que espumas e molas decidem parar de lutar contra uma pressão tão constante, ainda mais vindo de uma pessoa que foi engordando mais de vinte quilos ao longo desse tempo.

Eu e o Lucas nos casamos com cerimônia e festa, até fizemos outra festa, e acabamos ganhando muitos presentes, além de dinheiro vivo, que é o que realmente faz os olhos brilharem. A primeira festa foi em Ilhéus, na minha casa de praia, a segunda foi em São Carlos, onde Lucas fazia pós doutorado.

Foi em São Carlos também que nós tínhamos começado a namorar, primeiro quando fui fazer prova de mestrado no fim de 2006, depois nos poucos meses que eu passei lá entre a morte da minha mãe e a vontade de largar tudo e voltar pra Bahia, pra casa do meu pai.

Ganhamos muitas toalhas, e eu sou muito grata a elas, mesmo substituindo ao longo dos anos e mantendo só um conjunto. Também ganhamos lençóis bons, que duraram muito tempo, mas eu fui enjoando e hoje não temos nenhum deles. Alguns presentes de gente querida não duraram nada, enquanto que outros de gente que eu nem dava muita bola tão aqui até hoje. 

Nossa geladeira ainda é a mesma, e o fogão, e mesmo o microondas que surtou várias vezes mas conseguiu resistir só com consertos. A máquina de lavar que tinha garantia de dez anos acabou durando seis, e só então descobrimos que a garantia só se aplicava ao motor, que não foi a causa mortis dela. 

Compramos uma mesa cara na época, de madeira, tampo de vidro e seis lugares, porque era uma mesa pra durar pra sempre, ou pelo menos mais que o Terceiro Reich, que era pra ser de mil anos mas acabaram sendo só doze. A mesa continua ótima, apesar dos arranhões que sofreu na mudança pra esse apartamento aqui, um dia em que eu quase morri do coração.

As cadeiras que não estão tão bem, a madeira delas foi descolando, reagimos colando, mas mesmo assim estamos com duas que estão interditadas porque já não estão bambas, as partes se soltaram mesmo. Os assentos também já viram dias melhores.

Chegamos a pensar em fazer uma festinha pra comemorar os dez anos, mas depois fomos deixando pra lá. Acabamos resolvendo só jantar num restaurante chique aqui de Belo Horizonte, e eu ia usar um vestido lindo que comprei pensando nisso, mas o zíper era vagabundo e acabou quebrando, eu me acabei de chorar e desisti do restaurante.

Eu tava com depressão na época. Daí eu resolvi só usar uma roupa bonitinha normal e fomos no nosso café preferido. O restaurante poderia ficar pra outra vez, pra quando o antidepressivo já estivesse funcionando, mas ele só funcionou no primeiro dia da nossa quarentena, quando a gente já não tinha coragem de ir pra lugar nenhum.

É estranho pensar que quem assinou papéis e firmou esse compromisso de coabitação prolongada foi uma pessoa que não sou mais eu. Parece que o desgaste que móveis e eletrodomésticos sofreram eu também sofri, pelo visto meu corpo também tem obsolescência programada. Eu me sinto como se tivesse envelhecido cem anos em dez, apesar de a cara continuar até jovem. Carinha de 27, corpinho de 70, como eu costumo dizer.

Na literatura muitas vezes personagens, sentimentos ou a ambientação da história são representados por objetos. Em O Grande Gatsby a luz verde simboliza o amor de Gatsby por Daisy. Em David Copperfield a maleta da Jane Murdstone representa a personalidade dela, dura, metálica. Em Orgulho e Preconceito a Elisabeth só entende de verdade que Darcy é um cara legal vendo a casa dele.

Acho que o colchão simboliza meu corpo, e como tem sido difícil voltar ao nível de conforto que eu tinha aos 25 anos, quando era jovem, saudável e não precisava passar dois meses pesquisando um produto pra ter certeza de que ia servir. Esse ano quando decidimos que o nosso colchão já tinha cumprido o seu papel fomos na loja da mesma marca querendo comprar um idêntico. Não tinha, o modelo foi descontinuado porque, enfim, se passaram dez anos.

Comprei o mais caro da loja porque a vendedora me jurou que era o mais confortável, e até parecia mesmo, naquele teste relâmpago que a gente faz e que não testa nada de verdade. Chegando em casa vimos que ele era muito alto, tanto que o esforço de subir e descer acordou a tendinite que eu tenho no quadril, trazendo dor, muita dor. E ele era duro demais, até Lucas que é saudável achou.

E como compramos numa véspera de feriado prolongado tivemos que sofrer por dias, colocando edredons por cima pra atenuar o desconforto. No dia útil seguinte conseguimos trocar fazendo algum escândalo, na verdade eu fiz, Lucas disse que a gente aceitava perder dinheiro e trocar por outro mais baixo e menos duro. Conseguimos.

O colchão que temos agora é ok, dá pra dormir direitinho nele, mas também só dormir. As minhas tentativas de ficar sentada renderam um nódulo inédito no meio das costas que a minha massagista vem tentando tirar. O colchão cede demais e minha coluna vira um C. Mas por sugestão da massagista também comprei uma poltrona reclinável, aquela que chamam de “poltrona do papai” e tem dado muito certo.

Acho que agora é o meu móvel favorito, o mais adequado pra quem eu sou agora.

O vestido do zíper quebrado representa a minha saúde mental, que desmorona às vezes, mas pode ser consertada como o zíper também foi, pra isso existem costureiras e psiquiatras. 

Já o nosso casamento é sempre representado por aqueles playmobils da foto lá de cima. Eles seriam os topos de bolo da primeira festa de casamento, mas como o bolo desmoronou no transporte, eles só cumpriram seu papel na segunda festa. Na verdade a minha maior motivação de ter uma segunda festa era finalmente ter um bolo, e ele ficou maravilhoso.

Depois de anos o noivinho perdeu a mala não sei como, os bonecos vivem cheios de poeira, dão trabalho pra limpar, mas têm esse sorriso inabalável sempre, como é próprio da natureza deles.

Os diamantes são pra sempre, mas os playmobils também, e de repente até alguns casamentos.

O presente de casamento que eu dei pro Lucas foi essa aquarela com os dois noivinhos ❤

Esse post faz parte do Estação Blogagem, projeto criado por Aline Valek Gabi Barbosa pra dar aquele pontapé gostoso no renascimento dos blogs tais como eram outrora. Cada semana desse mês o tema é um negócio de tarô, e eu vou tentar participar de todas as quatro.

Terra, trabalho, dinheiro, produtividade, o suor do rosto: cabe muita coisa dentro do baú do naipe de outros. O que acontece se você jogar essa riqueza na escrita?

Publicado por

Camila Freire

Humorista amadora e desistente profissional Além de um blog tenho também uma newsletter sobre luto, doenças, família, sofrimento, redenção, bolo de chocolate e eu rindo de tudo isso. Com gifs. https://www.getrevue.co/profile/tempopracontar

11 comentários em “Um casamento em 10 anos de objetos”

  1. Quando eu era criança – e até um pouco depois disso – eu achava que meus brinquedos ganhavam vida depois que eu dormia. Vale lembrar que eu tive essa ideia antes de lançarem Toy Story (que foi lançado quando nós tínhamos 10 anos) e ela fazia tanto sentido pra mim que eu tentava brincar com cada uma das minhas bonecas igualmente pra nenhuma delas achar que era preterida em relação às outras, ainda que eu tivesse sim minhas favoritas. Eu fui crescendo e estendendo esse olhar meio humanizador aos outros objetos afetivos que eu fui tendo com o tempo e isso faz parte do apego absurdo que eu tenho com algumas coisas que julgo muito difíceis de me desfazer… Elas não são apenas coisas.

    Então eu me identifiquei um tanto com esse texto, em que móveis e objetos não são apenas coisas, mas pequenas alegorias da minha amiga que, assim como eles – e como os meus objetos fantasiosamente animados – também já passou por um bocado nesses últimos anos. Eu amo suas metáforas, Camis, amo. Amo como você é capaz de construir um texto tão sensível utilizando pequenos pedacinhos de cotidiano. Eu sempre termino minha leitura feliz e enternecida por pode acessar um pouco mais de você. Continua escrevendo, escreve mesmo um livro, pra que mais gente possa sentir essa ternura que eu sinto.

    Um beijo.

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    1. Ahhhh e é sempre tão bom contar com o seu olhar tão carinhoso pra tudo que eu escrevo ❤
      Menina, eu tb achava que meus brinquedos ganhavam vida, mas eu lembro que tinha um desenho em que isso acontecia. Uma menina chamada Marcela tinha brinquedos que qdo ela virava as costas entravam num portal pra um mundo mágico. Não lembro o nome desse desenho, nunca consegui encontrar, e pode ser que ele tenha sido só um delírio meu 😅

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      1. Bom, se esse desenho existe eu nunca assisti!! Mas convenhamos que a ideia de brinquedos ganhando vida não é lá muito inovadora mesmo, acho que toda criança sonha com algo assim, né?? Toy Story apenas usou da inconsciente coletivo para fazer sucesso e nos vender ainda mais brinquedos!

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  2. Como eu adoro ler os textos que você escreve, Camila.

    Não importa a temática, mas a forma que escreve é sempre brilhante, sensível…humana.

    Parabéns!

    Sou fã do Lucas como aluna e sua como escritora.

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