Meu pai em Meu Pai

Domingo passado eu resolvi que iria assistir a pelo menos um filme de Oscar e o escolhido foi Meu Pai (The Father, 2020) adaptação de uma peça francesa de 2014Era o filme que faria o Anthony Hopkins ganhar o prêmio de melhor ator, frustrando a expectativa de uma grande homenagem póstuma pra Chadwick Boseman.

Eu não vi o o filme do Boseman, mas eu imagino que ele estava muito bem. Nada contra o Pantera Negra. Mas eu sou filha de um pai com Alzheimer, e o Anthony Hopkins incorporou isso com perfeição. Ele até falava igual ao meu pai, e a cada vez que ele se perdia ou perguntava onde tava o relógio de pulso eu me lembrava do meu pai e sua eterna busca pela carteira e bolsa de trabalho.

Muitas idas à casa de repouso onde meu pai morava envolviam dizer que ele tava num hotel com tudo incluso, era só aproveitar e relaxar. Meu pai ficava muito tenso de comer e não saber como iria pagar já que não tinha dinheiro nem cartão.

E várias vezes eu só conseguia me despedir dele dizendo que ia viajar pra longe e não poderia perder o vôo. De qualquer forma quando eu aparecia ele sempre achava que eu tava voltando de viagem.

Mas isso tudo era bem antigamente, hoje eu poderia entrar e sair da atual casa de repouso sem problemas, já que meu pai não se lembra mais de mim. E de qualquer forma por causa da Covid eu não posso nem passar do portão.

Mês passado eu pude chegar perto do meu pai depois de mais de um ano, já que ele foi trocado de casa. Eu não podia abraçar, mas conversei um pouco, e pude pegar no cabelo dele.

Às vezes o que eu tenho mais saudade é de tocar naquele cabelo tão parecido com o meu, e tão preto ainda apesar de ele ter 68 anos.

Minha irmã assistiu Meu Pai depois da minha insistência mas pareceu não se empolgar tanto, na categoria Alzheimer ela ainda prefere Para sempre Alice (Still Alice, 2014). Esse foi um filme que saiu no Brasil mais ou menos na época em que tivemos que trazer meu pai aqui pra Belo Horizonte.

Pra mim ainda era tudo muito recente, aceitar a ideia do meu pai tão jovem e num asilo (ainda que caro), manejar as crises e peregrinar de médico em médico em busca de um diagnóstico que parecia insuportável até a gente perceber que poucas coisas são realmente insuportáveis na vida.

Acabamos nos acostumando com quase tudo mesmo.

No fim das contas eu vi o Para sempre Alice anos depois e achei bem tranquilo. Uma coisa que acontece comigo em filmes que claramente são sobre Alzheimer é que eles não me deixam tão impactada como naqueles em que um personagem parece ter Alzheimer e eu sou pega de surpresa.

Quando eu fazia letras isso acontecia o tempo todo. Não só o pessoal lá não acreditava nesse negócio de aviso de gatilho como também não tinha como avisar do gatilho de coisas que eles nem sabiam que eram sofridas pra mim.

E foi assim que eu tive crise de pânico tanto lendo a peça A morte do caixeiro viajante (Death of a Salesman, 1949) de Arthur Miller quanto vendo o filme de 1985, que pra piorar ainda era com o Dustin Hoffman, ator favorito do meu pai.

O meu professor de teatro americano passou o filme na sala e eu me programei pra chegar atrasada e perder uma cena que tinha me deixado péssima. Não adiantou nada, eu cheguei bem na hora dessa cena e tive que sair correndo da sala com falta de ar e taquicardia.

Mas filme e peça são maravilhosos, se você não tem problema com essas coisas eu recomendo demais.

E aí voltemos pro Anthony Hopkins. Não é a primeira vez que eu vejo o Hannibal Lecter no papel de pai doente sendo cuidado por uma filha. Ele estava no filme A Prova (Proof, 2005), baseado na peça de mesmo nome que foi vencedora de Pulizer e Tony em 2001.

A minha professora de literatura americana do século XX tocou na sala o audiolivro com a primeira cena e eu não consegui impedir as lágrimas de rolarem. Sorte que eu tava gripada no dia e pude justificar assim.

A peça é muito boa, mas o filme puxa pro lado do romance e eu acho que ficou aquém do que eu esperava.

Na história uma filha matemática genial tem que largar tudo pra cuidar do pai também matemático genial mas que tem a saúde muito debilitada por uma doença psiquiátrica não identificada. Tem uma outra irmã nesse meio, mas ela mora longe e só manda dinheiro.

O filme manteve a cena que pra mim foi a mais impactante, quando a filha principal encontra o pai sentado do lado de fora da casa no meio da neve e entende que ele não pode mais ficar sozinho.

Essa é a cena (sem legendas).

Sir Anthony e sua filha Gwyneth Paltrow

Aí vendo esses dois papeis semelhantes do Anthony Hopkins eu fique pensando: será que ele fez Rei Lear? Essa é uma das tragédias mais famosas de Shakespeare e talvez a primeira grande história de pai doente/louco e suas filhas.

O básico da peça já existia antes, mas foi Shakespeare que adicionou todos os elementos que fazem dela uma experiência bem dolorida.

A peça tem início quando o Rei Lear do título decide dividir seu reino entre suas três filhas porque já se considera velho demais.O critério que ele usa pra divisão é o de dar o melhor pedaço pra filha que fosse capaz da maior bajulação.

Daí que Goneril e Regan, as filhas mais velhas, acabam se saindo melhor. Goneril é maquiavélica, Regan é sociopata, e as duas juntas forçam aquela barra pra dizer tudo que o velho Lear quer ouvir.

Já Cordelia, a mais nova e até então favorita, se recusa a participar do circo. Ela diz que ama e respeita Lear como pai e rei que ele é, mas mais do que isso não.

Lear fica furioso e deserda Cordelia ali na frente de todo mundo. Ela acaba banida do reino, mas o rei da França que viu a treta toda fica com dó e casa com ela.

Essa cena tem uma estrutura de conto de fadas, e é mesmo quase idêntica à de Cap-o’ Rushes, uma história tradicional inglesa. Você também deve reconhecer esse esquema duas irmãs más e uma boa de histórias mais populares como Cinderela e A Bela e a Fera (a original).

De qualquer forma esse processo de sucessão estranho já sinalizava que Lear não andava muito bem, e até Goneril e Regan comentam entre elas que não esperavam o exílio de Cordelia.

Desse momento em diante as coisas vão só ladeira abaixo. Lear planeja se dividir entre os castelos das duas filhas mais velhas (junto com um exército enorme e desordeiro, aí por um lado eu não tiro a razão das irmãs do mal) mas depois de ser rejeitado por ambas e abandonado numa tempestade ele entra num processo de loucura que só se intensifica a cada cena.

Rei Lear tem tudo que o fã de Shakespeare gosta: assassinatos, traições, tortura, gente que finge ser o q não é, injustiças e quase todos os personagens mortos no final.

Na época em que eu estudei essa peça eu fiquei meio tocada, mas não alterada como com outras obras. Nessas histórias é importante eu me identificar com as filhas/os, e dessa vez não aconteceu, assim como também não rolou em Para sempre Alice.

Goneril e Regan são ruins demais, ainda que a gente concorde com algumas falas delas. Já Cordelia é muito boa, a personagem mais nobre da peça toda.

Eu me sinto bem no meio, como a Olivia Colman em Meu Pai, fazendo sacrifícios mas me imaginando longe desse sofrimento todo também.

Anthony Hopkins já tinha feito Rei Lear no teatro quando era mais novo, e eu acabei descobrindo que ele também fez um filme de 2018 que é ambientado na Inglaterra de um presente alternativo.

Apesar de ter o envolvimento da Amazon Prime o filme não tá disponível no Prime brasileiro, e eu acabei vendo no Youtube mesmo com legendas inúteis em árabe.

Aí eu entendi como esse ator conseguiu ser tão bom em Meu Pai, além do fato de ele ser um ator excelente. É basicamente uma variação do Rei Lear que ele faz há anos.

Esse filme me fez chorar tudo o que a peça não conseguiu, e de novo a Florence Pugh acabou me fazendo gostar de uma personagem que antes me dava antipatia. Primeiro Amy March em Adoráveis Mulheres, agora como Cordelia.

Lear e Cordelia passam boa parte da peça separados, e aí Hopkins e Pugh me fizeram desidratar no reencontro.

Pareceu o reencontro do meu pai com a minha irmã depois de ele ter sido traído e maltratado por gente da própria família. E depois que ela entendeu ele ter sido tão grosseiro e violento até então.

Sir Anthony e sua filha Florence Pugh

Pra uma família de plebeus a nossa bem que tem elementos demais das grandes tragédias.

E agora eu meio que entendo porque eu não conseguia me identificar com a Cordelia, ela representa mais a minha irmã do que eu.

Não que a minha irmã seja boazinha assim, longe, muito longe disso, mas foi ela que acabou acusada de coisas que não fez, ficou na linha de frente de várias injustiças e teve um arco de redenção junto com meu pai que não fez parte da minha trajetória.

Acho que a sina da Florence Pugh é representar a minha irmã. Eu e ela também tínhamos uma dinâmica de briga meio Jo e Amy March.

O Anthony Hopkins disse que quando um ator tem a idade pra fazer Rei Lear ele já tá velho demais pra fazer Rei Lear. Claramente não foi o caso dele, que teve a idade certa sempre. E pra sempre vai ter.

E agora a nossa família, eu, meu pai, Thaís e Bartozinho numa foto de 2018

Publicado por

Camila Freire

Humorista amadora e desistente profissional Além de um blog tenho também uma newsletter sobre luto, doenças, família, sofrimento, redenção, bolo de chocolate e eu rindo de tudo isso. Com gifs. https://www.getrevue.co/profile/tempopracontar

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