Lembrando as mortes coletivas

(…)

Porque tu estás morto para sempre

como todos os mortos pela Terra,

como todos os mortos que se olvidam

em um montão de cães que se apagaram.

Ninguém já te conhece. Não. Mas eu te canto

(…)


Garcia Lorca- Pranto por Ignacio Sánches Mejías (Trad. Jorge de Sena)


Em agosto de 1936 fascistas comandados por Francisco Franco executaram nos arredores de Granada alguns prisioneiros, entre eles o poeta e dramaturgo Federico García Lorca. A Guerra Civil Espanhola tinha começado um mês antes e ainda faria muitas vítimas.

Até hoje existem cem mil desaparecidos desses período, incluindo o próprio Lorca, e cerca de duas mil valas comuns onde eles poderiam estar.

Na escola a gente tem a impressão de que o fim da Segunda Guerra também acabou com todo o fascismo, pelo menos esse de primeira geração. Só que Franco governou até 1973, e mesmo depois da morte dele em 75 a lei de anistia impedia que as famílias buscassem respostas.

Eu sei, a gente já conhece essa história.

Depois de muitas batalhas judiciais foi possível começar a investigar algumas dessas valas comuns, isso já nos anos 2000. Os holofotes estavam em descobrir o paradeiro do corpo de Lorca, o que era compreensível, já que ele é o maior poeta espanhol do século XX.

Só que a família Lorca não estava muito feliz com isso não.

Em todos esses anos de impotência diante do governo os Lorca construíram sua própria forma de lidar com o legado de tanta destruição. Eles criaram fundações, um parque, e perto de onde ele foi assassinado está uma placa que diz “Lorca eran todos”.

Pra eles esses locais onde se encontram as ossadas já são cemitérios, e é justamente a presença do poeta em alguma dessas valas, qualquer uma, é o que permite que a memória de todos os desaparecidos continue viva.

Mesmo aqueles de quem nem se sabe os nomes, principalmente esses.

Pra mim foi estranho saber dessa recusa em encontrar um desaparecido e de dar a ele um enterro individual. A vida inteira eu conheci histórias contrárias, a luta de Antígona pra enterrar dignamente o irmão na peça de Sófocles, o horror dos cadáveres insepultos na Ilíada, as Mães da Praça de Maio na Argentina, Zuzu Angel aqui no Brasil, e tantos e mais tantos exemplos.

Lorca morreu com 38 anos e não teve filhos, seus familiares vivos hoje são sobrinhos-netos. Ele era gay, o que era mais ou menos conhecido de todos, tanto que foi um dos motivos da sua perseguição.

Ele também tinha ideais de esquerda, e se posicionou contra várias das injustiças do seu tempo, inclusive contra a nossa ditadura da época, que era a de Getúlio Vargas.

Eu não consigo imaginar um Lorca chateado de dividir a sepultura com o seu próprio povo, esse povo cuja diversidade ele retratou nos poemas e tentou alcançar em iniciativas de popularização do teatro.

Por outro lado eu também acho que ele apoiaria as famílias que tentam há tantos anos encontrar pais e avós.

Eu não tenho experiência em mortes tão coletivas, na minha família em geral se morre de doenças degenerativas, ou no máximo de alguma infecciosa que ninguém conseguiu prever.

São mais aleatórias mesmo, ao contrário dessas que acompanhamos todos os dias hoje e que invadem nossa vidas há mais de um ano. E que poderiam em grande parte ser evitadas com um governo menos assassino.

As mortes por Covid-19 no Brasil são tão políticas quanto as da Guerra Civil Espanhola. Eu não vejo grandes diferenças entre ordenar fuzilamentos e assegurar que um vírus mortal circule o máximo possível em um país.

Movimentos ultra-nacionalistas gostam muito de esquecimento. Se chegam ao poder eles ocultam dados, impedem censos, cortam verbas de pesquisa, censuram quem tenta fazer a verdade chegar aos outros. E claro, também prendem, torturam e matam sempre que o momento permite.

E aí no fim chega a anistia, que até significa esquecimento.

Que as famílias espanholas consigam encontrar seus antepassados e que isso traga conforto a uma dor tão antiga. Que as nossas famílias aqui consigam ter amparo pra essa dor tão recente, mas que também é o desdobramento de dores de outras épocas.

E que a gente sempre se lembre do que nos fizeram passar. Dos ritos funerários que foram negados, do luto distante, do desespero, dos crimes.

E invertendo as palavras de Lorca que possamos cantar os mortos que não podemos esquecer. E que as próximas gerações deles também possam se lembrar.


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Publicado por

Camila Freire

Humorista amadora e desistente profissional Além de um blog tenho também uma newsletter sobre luto, doenças, família, sofrimento, redenção, bolo de chocolate e eu rindo de tudo isso. Com gifs. https://www.getrevue.co/profile/tempopracontar

2 comentários em “Lembrando as mortes coletivas”

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