(Quase nada além de) plantas

Semana passada eu estive em Vitória da Conquista na Bahia, saindo de BH pela primeira vez desde janeiro de 2020. O que conseguiu me arrancar daqui foi a vontade de ver duas amigas muito queridas, uma que vive em Portugal e estava visitando e outra que mora lá mesmo.

Era como se a casa tivesse um sistema imune feito de plantas que cresciam por todos os lados.

E vacinas, nada disso teria acontecido sem vacinas.

Conquista é a cidade do meu pai e fica no sudoeste do estado. Em tese é sertão, mas como fica em cima de um planalto costuma ser fria no inverno.

Por conta disso os moradores criaram esse apelido insuportável de “Suíça baiana”. Eu nasci e cresci em Itabuna e a gente que é da Região Cacaueira não tem a menor paciência.

Eu aproveitei a viagem pra ver a situação da casa em que a minha avó morava e que estava fechada fazia alguns anos. Minha avó morreu em 2008 e ninguém pisava lá desde 2018.

Meu pai comprou essa casa nos anos 70 pra que a minha avó tivesse um lugar próprio. Ela fica num conjunto habitacional que na época da construção era super distante do centro e mal tinha linhas de ônibus.

Mas a cidade acabou crescendo pra lá, incluindo o que hoje é o bairro mais badalado de Conquista. Daí que a casa da minha avó com a sua planta reduzida e ultrapassada não vale muito em si, mas o terreno grande e bem localizado é o que realmente importa.

Então fomos eu e as minhas duas amigas até a casa, chamando também um chaveiro pra trocar as fechaduras porque minha irmã tinha perdido as chaves.

Não foi fácil chegar, o bairro mudou muito, a cidade mudou muito, e é bem fácil se perder onde as ruas parecem todas iguais. Nem o Waze nem o Google Maps ajudaram já que eles registram o endereço como sendo o de outra casa.

Tivemos que recorrer ao método ultrapassado de baixar o vidro e pedir orientações na rua.

A partir da praça principal eu consegui me localizar e lembrei de todas as vezes que eu brinquei lá quando era criança. As ruas largas e tranquilas ainda são perfeitas pra andar de bicicleta.

Eu esperava encontrar a casa meio acabada, claro. Esperava que o mato estivesse alto, como até que estava no quintal.

Mas eu não contava que tudo estaria se retorcendo e crescendo na horizontal bloqueando todas as entradas como a cerca de espinhos em volta do castelo nas cenas finais de A Bela Adormecida.

Outras comparações também foram feitas com The Walking Dead e com O Jardim Secreto no começo do filme.

Minha avó cultivava bastante coisa naquela casa. Tinha pitanga, acerola, o café que ela mesma torrava e passava, sendo uma senhorinha mais artesanal que os artesanais.

E na parte da frente tinha erva de tudo e ainda as rosas.

Eu não consegui identificar direito o que tinha lá hoje em dia entre o semeado e o não semeado.

Aliás eu criei um certo trauma de gente que consegue.

Minha amiga bióloga também não soube, já que ela é ornitóloga, não botânica.

A única coisa que a gente sentia forte era o cheiro de erva cidreira.

Achamos primeiro que não ia dar pra passar do portão porque enfim, medo de todos os bichos que poderiam estar lá. Mas o chaveiro entrou e foi abrindo caminho, e aí deu alguma coragem.

Minha avó amava a gente, mas ela não era uma pessoa fácil. Ela era altiva, grossa com muita gente e um desafio à convivência.

Sendo assim fazia muito sentido que a casa dela com paredes comprometidas, sujeira e forro caindo estivesse guardada por uma muralha orgânica como se o menino do dedo verde tivesse passado ali.

No meio do abandono a casa conseguiu forjar a própria proteção, parecia tão viva quanto a Residência Hill da Shirley Jackson ou a Casa de Usher do Poe.

A mim como apreciadora do gênero gótico só restava temer e admirar.

Não sabemos qual vai ser o destino imediato da casa. Eu queria vender do jeito que tá e minha irmã quer ver se da própria construção algo se aproveita.

As coisas parecem um pouco mais urgentes agora já que meu pai tá entrando na fase final do Alzheimer. Ele até esteve internado há algumas semanas com pneumonia por aspiração de comida, muito comum no caso dele mas que em épocas de Covid causam um mini enfarto em todo mundo.

De qualquer forma a casa parece não ter pressa, ela aprendeu a se proteger. Por enquanto acho que só me cabe apreciar aquele momento de realismo fantástico no meio desse realismo distópico que têm sido as nossas vidas.

De quando eu e o jardim da minha avó éramos só bebês

Esse texto foi publicado originalmente na minha newsletter, que você pode assinar bem aqui e receber tudo no seu e-mail.

O título foi inspirado na música [Nothing but] Flowers do Talking Heads.

Publicado por

Camila Freire

Humorista amadora e desistente profissional Além de um blog tenho também uma newsletter sobre luto, doenças, família, sofrimento, redenção, bolo de chocolate e eu rindo de tudo isso. Com gifs. https://www.getrevue.co/profile/tempopracontar

4 comentários em “(Quase nada além de) plantas”

  1. uau!! eu tinha salvo seu blog no meu feedly e nem me lembrava, mas estou encantada com a sua escrita depois de ler esse texto. é engraçado como pessoas e lugares se conectam, e como a gente sempre arranja um jeito de conectar os dois… ficou realmente parecido com o jardim secreto antes de ser encontrado. beijos!

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  2. Impressionadíssima com a força da natureza. Imagino o turbilhão de lembranças associadas à casa, e que maravilha de foto! Adoraria revisitar a casa dos meus avós, vendida há tempos para outra(s) família(s); de vez em quando me pego tentando lembrar exatamente onde cada cômodo/objeto ficava… Belíssimo texto Camila (xará)! 🙂

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