Morrer é como nascer ao contrário

Meu pai está morrendo.

Não sabemos quando vai acontecer, mas morrer é o próximo grande evento.

O Alzheimer é uma doença muito nebulosa em tudo, não existem aquelas sentenças de seis meses pra viver como no câncer. Meu pai pode morrer amanhã, ou semana que vem, ou daqui a oito meses, ou no próximo ano.

E nossas vidas ficam quase suspensas enquanto isso.

Lá pelos anos 90 eu e todo mundo vimos o filme Gasparzinho:o fantasminha camarada, aquele com a Christina Ricci. Tem uma cena em que a personagem dela pergunta ao Gasparzinho como é morrer, e ele responde que é como nascer, só que ao contrário.

Meu eu criança achou um lixo de resposta, meu eu de hoje acha de uma profunda sabedoria.

As crianças começam a vida frágeis e sem conseguir sustentar o corpo, e aos poucos vão conseguindo sentar, engatinhar, dar dois passos e cair, até andarem propriamente.

Com o avanço da doença meu pai passou a andar mais devagar, depois só se alguém amparasse, e aí só na cadeira de rodas, até não conseguir nem sustentar o corpo sentado.

Hoje em dia ele já está totalmente acamado e precisa de auxílio pra tudo, inclusive pra ter o corpo virado de um lado pra outro pra evitar feridas nas costas, as famosas úlceras de pressão ou escaras de decúbito.

Ele também tem o vocabulário de uma criança que ainda aprende a falar. Só responde sim e não, às vezes um hein, e recentemente me deixou bem surpresa com um obrigado.

A parte que tem sido mais problemática é a da alimentação. O Alzheimer vai destruindo tudo, até o reflexo de engasgo que a gente normalmente tem. Com isso a pessoa engole comida ou saliva e tudo parece normal enquanto resíduos e bactérias vão direto pro pulmão.

Aí aparecem febre, prostração, falta de ar e outros sintomas. É a pneumonia de aspiração, que acaba sendo a causa de morte mais comum nesses casos.

Desde o ano passado meu pai já foi internado três vezes por pneumonia. Ele inclusive passou o último mês internado, a recuperação de agora tem sido bem mais tortuosa e sofrida.

O corpo ainda parece forte o suficiente pra suportar a infecção e responder aos antibióticos, mas a morte segue ganhando terreno.

Eu imagino meu pai e a morte jogando baralho, buraco ou canastrão, os jogos favoritos dele. A morte já venceu, mas meu pai segue enrolando, fazendo durar mais, se divertindo talvez como quando ele passava a madrugada jogando com os colegas no tempo de faculdade.

A morte é experiente, já jogou xadrez com o Max Von Sydow, Twister com Bill e Ted e damas com os Animaniacs. Ela é como aquele computador que passou os anos 90 apanhando no xadrez do Kasparov até finalmente vencer porque ela não cansa, tem uma memória quase infinita e pode desestruturar emocionalmente o jogador humano fazendo um movimento doidão por falha no sistema.

Parafraseando e invertendo o poeta galês Dylan Thomas talvez meu pai já esteja brigando demais com a boa noite. Eu me pego às vezes querendo que ele só vá gentilmente com ela.

Eu e a minha irmã pensamos muito em que tipo de consciência existe pra ele agora. Se seria tudo confuso como num sonho, ou se é a angústia de não conseguir falar o que se quer, ou mexer quando se quer.

Às vezes eu imagino que é como estar boiando sozinho numa caverna imensa e ouvir vozes vindo bem fracas do lado de fora.

Parece a especulação que a gente gosta de fazer em relação aos bebês também.

Meu pai ainda reage às músicas que ele gostava. Se a gente coloca pra tocar Caetano, Chico, Gil, Beatles ou Roberto Carlos o olhar dele muda totalmente, deixa de contemplar o nada pra parecer focado em alguma coisa. A memória musical é a parte mais persistente do nosso cérebro, nem as proteínas sinistras conseguem destruir.

Ele também adora comer, principalmente tudo que é doce. Tem sido uma luta sangrenta preservar esse que é um dos poucos prazeres que restaram, o poder biomédico intervencionista quer logo que ele use sonda no estômago. Não importa que as pesquisas nem recomendem no caso dele, e que seria só gerar desconforto pra um benefício inexistente.

Assim como nascer, morrer naturalmente ficou difícil também. Eu me vejo muito no lugar das mães que lutam por parto normal como regra, e não só “se der”, como um capricho, e também por alimentação natural, que tem bem mais benefícios do que a simples ingestão de calorias.

E nos dois extremos nós encontramos ela mesma, a Nestlé.

Já faz sete anos que estamos nessa saga inglória e em vários momentos parece que sempre foi assim, meu pai forte e saudável foi só um delírio que tivemos.

E às vezes eu me pego numa agonia toda renovada: por que justo com a gente depois de tudo que sofremos com a morte da minha mãe?

E a resposta implacável e verdadeira: e por que não?

Meu antídoto pro desespero do futuro vem do registro dos desesperos do passado. Em 2016 eu tinha medo de ser esquecida, mas em 2018 eu fui foi bem ok até.

Em 2017 eu tinha medo de ver as senhoras já acamadas em estado avançado de demência. Agora nós é que somos o fantasma do natal do futuro, mas não muito, porque na casa de repouso atual os acamados ficam separados dos outros.

Tem sido uma jornada confusa e tortuosa, mas cheia de momentos ternos também. Houve uma época em que meu pai foi mais feliz do que em qualquer outro período antes da doença.

Ele esqueceu que esquecia, parou de remoer o passado, não conseguia pensar no futuro, então vivia totalmente no presente. Tudo parecia bonito, cada iogurte era o mais delicioso do mundo, a minha semelhança com ele era como um detalhe impressionante que ele tinha acabado de descobrir.

Esse ano eu voltei a me sentir sozinha no sofrimento como eu me sentia na época do diagnóstico. Eu não escondo mais o que tem acontecido com meu pai, devo ter uns trocentos textos escritos a respeito, mas parece que eu e as outras pessoas voltamos a falar línguas diferentes, a ter um vidro de aquário separando o cotidiano delas da vivência anormal da minha família.

Eu, meu pai e minha irmã seguimos sendo punidos por sermos jovens demais pra tudo que temos passado.

Meu grande alento tem sido o fascínio de poder acompanhar o processo inteiro. Como a mente se reorganiza enquanto se autodestrói, como o corpo vai desligando parte por parte tentando ser gentil e quase pedindo desculpas pelo transtorno.

E eu deixo por fim um poema do americano e.e.cummings, que pode ser sobre amor, sobre vida, e sobre essa essência desconhecida que nos faz chegar aqui e também partir. A tradução é minha e o original é esse aqui.

esse é o segredo mais profundo que ninguém conhece

(essa é a raiz da raiz e o botão do botão e o céu do céu de uma árvore chamada vida; que cresce mais alto do que a alma pode esperar ou a mente pode esconder)

e esse é o encanto que mantém as estrelas separadas

eu carrego o seu coração (eu carrego junto ao meu)

Publicado por

Camila Freire

Humorista amadora e desistente profissional Além de um blog tenho também uma newsletter sobre luto, doenças, família, sofrimento, redenção, bolo de chocolate e eu rindo de tudo isso. Com gifs. https://www.getrevue.co/profile/tempopracontar

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