Aqui na minha rua tem um prédio com rachaduras superficiais que foram cobertas com massa corrida e agora parecem estrias. Eu acho legal ficar olhando pra elas, ver onde começam, até onde vão e os desenhos que vão formando no caminho. A gente nunca pensa nas nossas próprias estrias de forma positiva, são tratadas como a evidência do crime que ninguém cometeu.
Continuar lendo Enxergando estrias nos prédiosCantando nós honramos nossos mortos
Era uma vez um pastor grego que tava lá cuidando da sua vida e do seu rebanho quando foi interrompido pela chegada das Musas. E elas não saíram da parede cantando “I’m alive”, nem se pareciam com a Olivia Newton-John e muito menos andavam de patins. Aquele filme Xanadu ó, músicas ótimas, mas só mentiras.
Continuar lendo Cantando nós honramos nossos mortosEu, meu pai e o enigma de Mrs Robinson
Se alguém me perguntasse qual o meu filme favorito, eu teria sérios problemas pra responder. Acho que acabaria nem conseguindo. Já se a pergunta fosse qual o mais querido, aquele que me faz ter um carinho especial, mesmo reconhecendo algumas falhas aqui e ali, ah, esse com certeza é A Primeira Noite de um Homem (The Graduate, 1967).
Continuar lendo Eu, meu pai e o enigma de Mrs RobinsonEu luto pessoal e coletivo também
Eu estou acostumada a sofrer sozinha ou quase sozinha. Quando minha mãe morreu éramos só eu, Thaís e meu pai. Quando meu pai adoeceu éramos eu, Thaís e Lucas. Eram lutos tão particulares que eu demorei pra conseguir compartilhar com os outros, esses outros que não sofriam como eu, só pegavam uma dor de segunda mão em consideração a mim.
Continuar lendo Eu luto pessoal e coletivo tambémA tragédia começou na praia
Eu cresci perto da praia, tanto que nem me lembro de quando vi o mar pela primeira vez. Mesmo assim aos oito anos eu não conhecia as caravelas, as primas das águas-vivas que queimam quase do mesmo jeito. São tão bonitas aquelas coisinhas coloridas na areia, foi o que eu e minha irmã pensamos quando resolvemos ir lá pegar.
Continuar lendo A tragédia começou na praiaQuando meu pai me esqueceu
Aconteceu sábado passado, mas eu já desconfiava há algum tempo. Chamei meu pai de pai, e ele não entendeu. “Pai?” foi a resposta-pergunta que eu ouvi. Tentei contornar dizendo meu nome, mas não fez diferença. Desisti e resolvi só me concentrar na tarefa de conduzir até o carro uma pessoa que anda com dificuldade e não consegue entender muitos comandos.
Continuar lendo Quando meu pai me esqueceuParece azar mas é só depressão?
Eu faço diário todos os dias. Na verdade nem todos os dias, às vezes eu fico cansada, ou o remédio pra dormir bate super rápido, o que às vezes é legal porque as entradas ficam surreais e eu dou altas risadas no dia seguinte. Daí que eu sei quando os textos começam a ficar muito esquisitos, do tipo “fiquei o dia todo deitada hoje”, ou “vontade de fazer nada por muito tempo”, ou “eu queria dormir e nem acordar mais”.
Continuar lendo Parece azar mas é só depressão?Nosso corpo, esse estranho conhecido
Se você pensar bem, seu corpo até pode pertencer a você, mas nem é tão seu assim. Não falo em termos jurídicos, porque o direito é uma dessas ficções que a gente cria pra ordenar um pouco o mundo. Também não falo de religião nem desse deus que por algum motivo teria pensado em você enquanto fazia a Via Láctea e os dinossauros.
Continuar lendo Nosso corpo, esse estranho conhecidoSobre monstros e armas
Alguns monstros não morrem nunca. Você atira neles, esfaqueia, joga do alto de um prédio, taca fogo e mesmo assim eles aparecem bem serelepes no filme seguinte. Toda mocinha que se preze tem que manter a arma debaixo do travesseiro, mais ainda se o monstro dela é uma estrela de várias sequências tipo Sexta-feira 13 ou Halloween.
Continuar lendo Sobre monstros e armasNatal, bobagem!
Quando eu tinha sete anos eu comecei a desconfiar que aquela história de Papai Noel não fazia sentido nenhum. Nossa casa era completamente trancada à noite, meu pai tinha TOC (de verdade) e verificava todas as portas milhões de vezes. E nós tínhamos grades nas janelas, impossível que alguém passasse.
Sobrava só mágica mesmo.
Naquele ano eu não havia recebido presente na manhã do dia 25. Nós estávamos em Vitória da Conquista, na casa da família do meu pai, e minha mãe queria evitar a fadiga de me dar um presente caro na frente daquele pessoal que ela odiava.
Aí ela me disse que o Papai Noel não tinha conseguido me encontrar em outra cidade e tinha deixado meu presente lá em Itabuna, pra quando eu voltasse.
Mas ué
Cadê o milagre do rastreamento? Ele não conseguia entregar presentes pra todas as crianças do mundo na mesma noite? Ele não era tipo Deus, que chegava em todos os lugares ao mesmo tempo?
Tinha alguma coisa errada com aquela história.
Eu pensei, pensei, e resolvi mandar aquele papo reto pra minha mãe:
“Mãe, Papai Noel existe mesmo?”
Ela suspirou, riu e me respondeu sabiamente:
“Se você está perguntando é porque já sabe a resposta”
Eu concluí que não existia, mas guardei o pensamento pra mim e ganhei presente por mais um ano. Minha mãe e suas conversas enigmáticas que permitiam que a gente se fizesse de desentendida.
E sim, muitas vezes quando a gente pergunta é porque já sabe a resposta. Mesmo que a gente não saiba que sabe, ou finja não saber, ou não queira assumir o ônus que o conhecimento traz.
Há um tempo atrás eu dizia que não estava deprimida, apesar de passar o dia todinho descrevendo sinais clássicos de depressão: cansaço, irritabilidade e preferência pelo isolamento.
Junta também aí na conta problemas de cognição (reprovei em várias matérias de faculdade porque não consegui escrever os trabalhos finais), de sono (tive que aumentar dose de remédio pra conseguir dormir) e de autoimagem (eu passo o dia todinho me sentindo um lixo).
Essa é a minha quinta crise depressiva, a segunda só esse ano. 2017 me encontrou deprimida e vai me deixar deprimida também, virou a minha nova tradição de Réveillon, junto com lembrar quantos anos faz que a minha mãe morreu. Lá se vão onze anos desde aquele 31 de dezembro de 2006.
Felizmente eu reconheci a treta e já comecei o tratamento.
Esse pensamento de que minha vida não tem rumo vai passar.
Junto com a vontade de morrer que vem todos os dias.
E a certeza de que todo mundo me odeia e ficaria melhor sem mim.
E a sensação de que tudo o que eu faço e digo é errado.
E o sorriso que vem com alegrias tão pequenas, e que me lembram das alegrias maiores que eu não tenho, e eu me sinto uma claque humana, rindo num sitcom sem graça, porque minha boca é tão grande, sorrir é quase automático e dá menos trabalho que chorar.
Tudo isso vai passar. Já passou antes e vai passar de novo. Eu não levo mais a sério as vozes na minha cabeça, porque como diria um conhecido, eu não negocio com terroristas.
Deixa o resgate acontecer que a gente conversa direito.
Podia ser esse o meu milagre de Natal, né? O remédio podia bater até o dia 25. Quem sabe assim eu até voltasse a gostar dessa época.
Mentira, detesto dezembro, pra mim o entre festas é tipo um entre guerras. Mas eu queria voltar a ter o prazer de odiar esse época estando sã.
Quem sabe ano que vem.
***
Eu detesto época de Natal, mas gosto de filmes, desenhos e histórias natalinas em geral, porque eu sou louca, e isso já ficou provado. E mais do que tudo eu sou alucinada pelo homem que nasceu há muito tempo tornou toda essa insanidade dezembrina possível.
Não, não me refiro ao grande JC, que o meu ateísmo não permite.
Falo de Charles Dickens, o muso vitoriano, o divo dos cliffhangers, o imperador da ficção serializada, defensor das crianças exploradas e dono desse meu coração folhetinesco.
Se não te apresentaram a ele, eu apresento agora. Dickens nasceu em 1812, numa Inglaterra que não era, assim, o melhooooor lugar pra morar se você fosse pobre. Naquele tempo tinha muita Revolução Industrial pra pouca legislação trabalhista, mais ou menos como o Brasil vai ser em breve, e da criança à mulher grávida, tava todo mundo sujando a cara numa chaminé de fábrica por mais horas do que eu gostaria de contar.
O próprio Dickens teve que trabalhar quando era criança, e depois que ele virou escritor ele denunciou pra todo mundo as condições bizarras em que vivia a classe trabalhadora inglesa.
Mas ele fazia isso enquanto criava umas tramas novelescas, cheias de personagens maravilhosos, com suspense e muito, muito humor. Sério, tem umas passagens em que você não sabe se ri ou se chora.
Mas eu falava de Natal, pois então. Antigamente a galera não era tão chegada assim em comemorar Natal, pelo menos na Inglaterra e nos Estados Unidos. Foi Dickens quem veio com essa história de sentido da data, com tudo branquinho de neve, famílias reunidas e a pergunta “o que você fez?”, muito antes de John Lennon ou Simone.
E tudo começou com O Conto de Natal, aquela história que ninguém precisa ter lido pra conhecer. Quem no mundo Ocidental não é íntimo de Scrooge e os três fantasmas?
E mesmo não sabendo os nomes, essa estrutura de ver o que foi a sua vida e o que ela poderia ser no futuro alternativo já virou até clichê de tão usada.
Quando eu era criança eu tinha um vhs chamado O Cântico de Natal dos Flintstones, que tinha Vilma, Fred e sua turma encenando o clássico. Eu e minha irmã vimos tantas vezes que memorizamos as falas, e eu fiquei feliz demais de descobrir que o desenho era quase idêntico à obra original.
Ano passado eu consegui comprar o dvd, e esse ano eu assisti junto com o Lucas, aliás, esse foi o ano em que Lucas conheceu Dickens finalmente. Primeiro foi O Conto, e agora ele tá no começo de David Copperfield, o livro da minha vida, que eu tenho relido desde que eu era jovenzinha.
Parece que não foi um ano tão ruim assim, no fim das contas.
E pra encerrar eu te deixo nas palavras imortais do Scrooge do começo da história, aquele velho “sovina, mesquinho, avarento e pecador”:
“Natal, BOBAGEM!”